Por Ricardo Tesch
(Artigo publicado originalmente na edição v13n3 da Revista Clínica de Ortodontia Dental Press)
As cefaleias são as desordens neurológicas mais prevalentes, entre as quais a enxaqueca é uma de suas formas primárias mais comuns, afetando cerca de 12% da população adulta de países ocidentais. Assim como as disfunções temporomandibulares (DTM) — também as mais frequentes das condições dolorosas crônicas orofaciais —, a enxaqueca acomete, comumente, mulheres em idade reprodutiva, e sua prevalência cai fortemente com o avanço da idade. Ambas as desordens causam impacto significativo na qualidade de vida dos pacientes, podendo chegar à manifestação de comportamentos profundamente incapacitantes, com interferências significativas nas atividades diárias de quem as sofre.
Embora estimativas apontem que cerca de 10% da população se queixe de dores associadas às DTM, apenas perto da metade desses pacientes buscam tratamento. Em qualquer momento particular, a procura por tratamento para DTM parece estar predominantemente correlacionada à presença de dor e sua gravidade, sendo o alívio dessa o indicador mais confiável, por meio do qual pacientes e profissionais de saúde julgam o sucesso do tratamento.
Nas últimas décadas, enormes avanços foram feitos na identificação de estruturas e processos, tanto fisiopatológicos quanto comportamentais, que contribuam para a fenomenologia dessas modalidades de dor crônica. Sabe-se que há considerável sobreposição na fisiopatologia dessas condições; a enxaqueca e a DTM frequentemente coexistem em um mesmo paciente e a relação entre ambas é complexa. Pacientes que sofrem de enxaqueca regularmente sentem dor em áreas relacionadas ao sistema mastigatório, enquanto pacientes com DTM, também com frequência, experimentam dores de cabeça. Finalmente, a enxaqueca e a DTM são condições comórbidas, e o fenótipo final de pacientes com essa comorbidade pode representar o resultado da contribuição de ambas.
A enxaqueca e a DTM compartilham outras características, como a duração da dor, seu padrão temporal e a presença de desordens psiquiátricas comórbidas. Além disso, a gravidade da dor experimentada por pacientes com DTM frequentemente se correlaciona com a gravidade da cefaleia por enxaqueca. Dessa forma, sugere-se que ambas sejam influenciadas por fatores predisponentes comuns, ou que, ao menos, compartilhem dos mesmos mecanismos periféricos e/ou centrais. Mecanismos de sensibilização central estão provavelmente envolvidos na fisiopatologia de ambas as condições. Dessa forma, a DTM e a enxaqueca podem agravar ou perpetuar uma à outra; indivíduos com enxaqueca podem ter sua cefaleia piorada por uma DTM coexistente, sendo o contrário igualmente possível.
Uma área promissora na investigação dos mecanismos subjacentes a essa comorbidade é a genética, que ganhou força após a descoberta da associação, em seres humanos, de uma variante do gene que codifica a enzima catecol-O-metil-transferase (COMT) com a diminuição dos mecanismos de regulação da atividade dolorosa no sistema nervoso central. Recentemente, foi demonstrada a contribuição de halotipos do gene COMT como fatores genéticos prognósticos para a variabilidade da resposta farmacodinâmica a drogas ß-bloqueadoras, como o propanonol, em pacientes com dor musculoesquelética crônica. Dessa forma, foi possível a identificação de subgrupos de pacientes que potencialmente se beneficiariam dessa abordagem farmacoterápica, como exemplo hipotético aqueles que, influenciados por alterações centrais, apresentam comorbidade entre enxaqueca e DTM.
No mês de maio, a Academia Americana de Dor Orofacial promoveu seu 38˚ Encontro Anual, com o tema “Um mundo de alívio”. Uma das palestras de maior impacto foi ministrada pelo neurologista brasileiro Marcelo Bigal, membro do corpo docente do Departamento de Neurologia da Faculdade de Medicina Albert Einstein, em Nova Iorque. Nessa, foram apresentados os resultados de um experimento clínico controlado por placebo, aleatório e duplo-cego, desenhado para investigar a eficácia de modalidade terapêutica isolada para enxaqueca (propranolol 90mg) ou concomitante ao tratamento para DTM muscular (placa estabilizadora), em mulheres com essa comorbidade.
Os resultados obtidos demonstraram que o uso concomitante de propranolol e placa estabilizadora diminuiu de maneira significativa o número de episódios de cefaleia após três meses de acompanhamento, quando comparado ao emprego isolado e controlado por placebo de cada terapia. Contudo, as variáveis relacionadas à DTM muscular, como o limiar de dor à palpação, não sofreram alterações significativas entre os grupos estudados. Dessa forma, em mulheres com DTM e enxaqueca concomitantes, essa última pode melhorar de maneira significativa quando ambas as condições são tratadas simultaneamente, enquanto a melhor conduta terapêutica para DTM muscular em mulheres com enxaqueca ainda precisa ser estabelecida.
Assim sendo, dentistas habilitados no diagnóstico e controle de casos de DTM, especialmente muscular, podem, sim, contribuir para o tratamento de pacientes com enxaqueca concomitante, dentro de um ambiente multidisciplinar.