Editorial publicado originalmente na Revista Clínica de Ortodontia Dental Press, v18n6, pelo editor-chefe do periódico Marcio Almeida
Vivemos em uma era na qual a palavra digital se tornou extremamente conhecida e importante para todos. Na Ortodontia, não poderia ser diferente: é a inovação disruptiva permeando o nosso meio. Fluxo digital, ser digital, Ortodontia digital, planejamento digital, diagnóstico digital e outras denominações já fazem parte do vocabulário de muitos colegas ortodontistas. Não é fácil acompanhar a evolução de tudo aquilo que vem acontecendo e, simultaneamente, revolucionando a nossa querida especialidade. É mais ou menos assim: “Entre agora, de cabeça, ou fique para trás!” Vivemos um momento de inovações sem fim. E se, assim como eu, você tem a incrível missão e a inquietante oportunidade de poder transmitir os seus conhecimentos, isso pode ser um pouco pior. Por quê? Vou tentar explicar aqui.
Meus primeiros passos na Ortodontia se deram há algum tempo… Mais especificamente, há 27 anos. Sim, sou considerado, no sentido nato da palavra, um ortodontista raiz e, desse modo, não é difícil imaginar que vivíamos em uma época muito distinta da atual. Os tratamentos ortodônticos eram bem menos complexos; os casos que apareciam no consultório eram mais simples e as mecânicas, menos sofisticadas; tínhamos mais medo de errar, éramos menos corajosos; havia menos cobrança do paciente, tanto de resultados quanto de tempo de tratamento; o diagnóstico baseava-se em plenitude na cefalometria e seguíamos um processo rígido de ensino e aprendizagem que fora consolidado há mais de um século. O sistema de braquetes era o não-programado, o famoso Edgewise, proposto por Edward Hartley Angle em 1928; e os fios, essencialmente de ligas de aço inox. A ancoragem baseava-se no famoso “tripé” composto por aparelho extrabucal, placa labioativa e elásticos de Classe III.
Empenhávamo-nos em conformar os arcos de aço, diagramando-os e coordenando-os de maneira que eles mantivessem, do início ao fim, o formato da arcada de cada paciente. A sequência de arcos era interminável e as dobras requeridas eram tantas que chegavam a marcar os sofridos dedos dos ortodontistas. A cefalometria imperava soberanamente: as análises de Steiner e Tweed dominavam os planejamentos. Não raro ficávamos horas e mais horas planejando os casos clínicos, e a resolução quase sempre se baseava na extração dentária. Alguns movimentos ortodônticos eram proibidos, por exemplo: expandir a distância intercaninos e proclinar demasiadamente os incisivos inferiores; aliás, apregoava-se que os incisivos deveriam ser mantidos verticalizados na base óssea, “a la Tweed”.
A análise da face, ainda incipiente, carecia de maior fundamentação científica, prevalecendo a subjetividade. Tratávamos um erro de cada vez, ou seja, não raro os pacientes com maior número de problemas demandavam um tratamento demasiadamente longo e cansativo, pois a cartilha propunha correção transversal, vertical e sagital, nessa ordem. Desgastes interproximais ainda eram vistos como deletérios aos dentes, pois deixariam marcas indeléveis no esmalte. Para as mensurações dentárias, como discrepância de modelos, onde se aferiam o espaço presente e o espaço requerido sobre os modelos de gesso, utilizava-se régua milimetrada e compasso de ponta seca. A mensuração da discrepância de Bolton também requeria arsenal similar. Na verdade, poderíamos ficar aqui comentando sobre as reminiscências da Ortodontia e não conseguiríamos abranger tudo aquilo que um dia foi propugnado1. Sabendo-se que a Ortodontia é a especialidade mais antiga da Odontologia, as perguntas que vêm agora seriam: Você se enquadrou nesse contexto aqui exposto? Você, assim como eu, se considera um “dinossauro” da Ortodontia hodierna? O que você pretende ensinar aos seus alunos nessa era digital, caso seja um professor ou um digital “influencer” do Instagram? Será que os conceitos, os paradigmas e dogmas do passado devem ser abandonados? Como você vê a Ortodontia nessa evolução?
Vamos com calma… Se optarmos por adentrar no mundo digital, deveremos conhecer ao menos os sistemas de computação básicos, softwares, linguagem de formatação de arquivos (DICOM, STL), além de investir em equipamentos de captura de imagem 3D (scanners), computadores e softwares apropriados. Sem falar que alguns podem querer comprar impressoras 3D, para imprimir seus próprios alinhadores. Acima de tudo, deveremos aprender a manejar o tão falado fluxo digital na gestão clínica. Indubitavelmente, mudar é muito desafiador para os conservadores de plantão! É fato que ainda não temos respostas para várias perguntas. Todavia, vejo com certo otimismo, mas ao mesmo tempo algum pessimismo, essa Ortodontia 3D. Observo com bons olhos o diagnóstico se voltando cada dia mais para o uso da TCFC (com menor índice de radiação) e, também, o acompanhamento e a previsibilidade dos casos clínicos por meio da simulação do movimento dentário (setup virtual) — que ocorre de maneira mais precisa, intuitiva e simplificada, com auxílio da computação gráfica e dos softwares de gerenciamento.
É fato que os alinhadores estão em crescente ascensão, pois o sistema tridimensional de digitalização dos processos tornou-se um dos grandes diferenciais. A previsão antecipada dos movimentos dentários em 3D, bem como a simulação das diversas formas e possibilidades de tratamento, são alguns dos diferenciais de se tornar digital no consultório. A comunicação com nossos clientes mudou, pois o planejamento virtual auxilia, em demasia, na visualização dos prováveis resultados do tratamento e serve como uma valiosa ferramenta de venda para o ortodontista. Muitos pacientes que foram tratados no passado vêm se beneficiando com o uso dos alinhadores, pois não gostariam de utilizar braquetes de novo. Penso que, se depender de nossos clientes, caminharemos rapidamente para uma Ortodontia que será fragmentada ou híbrida, combinando minimamente aparelhos fixos e muitos alinhadores, principalmente para os casos mais complexos.
Já observo com pessimismo que muitos profissionais ainda não estão aptos a exercer uma Ortodontia digital de excelência. Por quê? Porque muitos querem pegar um atalho e, no afã de encurtar o caminho do aprendizado na Ortodontia, acabam caindo em ciladas. Seriam esses profissionais os chamados ortodontistas Nutella? Não sei bem ao certo, mas acho que não tem certo ou errado aqui. Aquele ortodontista supertecnológico, antenado, que usa a nuvem para arquivar os registros de seus pacientes, que tem um equipamento de última geração, scanners, impressoras 3D e outras ferramentas tecnológicas, muitas vezes não se alicerça em princípios sólidos, fundamentados em um diagnóstico preciso, que deveria ter sido aprendido na sua formação básica. Um plano de tratamento adequado, com a utilização de sistemas de forças corretos, que possibilitem maior controle dos movimentos dentários durante a correção das más oclusões, é uma condição sine qua non para o sucesso.
A Ortodontia, não obstante exija habilidade manual, requer um raciocínio lógico e conhecimento da Biomecânica. A minha preocupação com a Ortodontia atual é que muitos clínicos que praticam a Ortodontia como especialidade estão deixando de lado os aparelhos fixos e colocando alinhadores nos pacientes, achando que o aparelho é mágico, “mais inteligente” e mais fácil de chegar à resolução dos casos do que os outros. Chegam ao ponto de esquecer que os parâmetros que buscamos para uma boa finalização deveriam combinar a estética da face, a função e a oclusão, entre outros fatores — que, diga-se de passagem, não são fáceis de se obter. Alguns ortodontistas simplesmente focam somente em alinhar e nivelar os dentes, sem se preocupar com a má oclusão em si. Porquanto, a curva de aprendizado é íngreme também; a dificuldade de tratamento de algumas más oclusões com o sistema de alinhadores exige um tratamento associado a outras opções advindas de métodos convencionais2. A confecção de attachments colados ao esmalte dentário, o recorte nos alinhadores (precision cuts), a colagem de botões aos dentes ou aos alinhadores, a aplicação de elásticos intra e intermaxilares, e a instalação de mini-implantes são elementos auxiliares eficientes que ajudam no controle dos efeitos colaterais e promovem maior previsibilidade ao movimento dentário, contribuindo na redução das limitações do sistema. Aliás, estamos começando a entender, por meio de recentes publicações de trabalhos científicos, as limitações dos tratamentos com alinhadores.
Para alguns, a Ortodontia é uma especialidade que tende a desaparecer, em função da própria tecnologia. Será? Aqui também faço uma reflexão: O que nossos pacientes buscam hoje? Relação molar? Correção do overjet? Dentes alinhados? Social six? Ainda não sabemos ao certo, mas é fato que a qualidade de vida dos que foram tratados com Ortodontia aumenta significativamente. Muitos ortodontistas americanos e canadenses já duelam por pacientes com os clínicos gerais, que estão habilitados a fazer uma Ortodontia digital. Observa-se um aumento expressivo de empresas que buscam desenvolver os seus alinhadores. E penso que é aí que reside o perigo. Algumas firmas já estão vendendo produtos diretamente aos pacientes, e esse é um sério problema que enfrentaremos mais adiante. Os pacientes chegam ao consultório, muitas vezes, sabendo o preço que essas firmas cobram para entregar, no conforto de suas casas, os alinhadores, para que façam eles mesmos o tratamento — similarmente ao que aconteceu com os clareadores dentários. Os nossos pacientes precisam saber que eles devem buscar um profissional qualificado, o que independe do tipo de aparelho utilizado, e que entregará resultados, seja com aparelhos fixos ou móveis. Em outras palavras, quem deve resolver os problemas ortodônticos é o ortodontista, e não as firmas que vendem um produto para autotratamento. Indo mais adiante, os pacientes já questionam o porquê de existir uma dicotomia de preços e orçamentos fornecidos por diversos profissionais, havendo um produto único no mercado, que é extremamente tecnológico e concebido por computadores.
O paciente não deve achar que está comprando um produto, mas sim investindo seu dinheiro no profissional que estudou muito e conhece as bases da Ortodontia.
Nem tudo que é novidade é bom. Nem tudo que é considerado raiz é ultrapassado. Para ser um bom ortodontista, pode-se dizer que é preciso mesclar um pouco do raiz com o Nutella. Não seja o primeiro e nem o último na questão digital! Não espere demasiadamente para iniciar, pois a curva de aprendizado da tecnologia digital é íngreme e, daqui a pouco, você poderá estar fazendo parte da era dos “dinossauros” da Ortodontia.
Uma boa leitura para todos, e fiquem com Deus!
Abraços do
Marcio Almeida.
Disponível no Dental GO
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Revista Clínica de Ortodontia Dental Press, v18n6
REFERÊNCIAS
1. Almeida MR, Câmara CA. Uma entrevista com Marcio Almeida. Rev Clín Ortod Dental Press. 2018 Ago-Set;17(4):6-32.
2. Almeida MR. Acessórios para auxílio da movimentação dental com alinhadores. Ortodontia. 2019;52(4):386-92.
Como citar: Almeida MR. Ortodontista raiz e ortodontista Nutella em tempos de Ortodontia digital. Rev Clín Ortod Dental Press. 2019 Dez-2020 Jan;18(6):4-7.
Enviado em: 10/12/2019 Revisado e aceito: 13/12/2019 DOI: https://doi.org/10.14436/1676-6849.18.6.004-007.edt
Endereço para correspondência: Marcio Almeida E-mail: [email protected]