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Um homem, uma engenhoca, um legado – por David Normando

David Normando

David Normando

Doutor em Ortodontia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e professor adjunto da Universidade Federal do Pará (UFPA). É ex-editor-chefe da Dental Press Journal of Orthodontics (DPJO).

 

O seu trabalho não é a pena que paga por ser homem,
mas um modo de amar e de ajudar o mundo a ser melhor.
Thiago de Mello, poeta amazonense.
O ano era 1995. Aguardávamos, no saguão do aeroporto de San Francisco, o voo para Los Angeles, EUA, porventura para mais um congresso americano. A meia-distância, um grupo de ortodontistas conversava com um senhor grisalho. Sentado, ele demonstrava como construir um aparelho que havia criado — uma espécie de Lego. A voz suave, fraca até, era cheia de perseverança. O tal grisalho era Carlos Martins Coelho Filho. Naquele primeiro contato, confesso que a figura humana e a suavidade da voz causaram-me mais admiração do que o pró prio aparelho, o APM III.

Anos mais tarde, o modelo APM IV entrava na seara ortodôntica, ao mesmo tempo em que me aproximei do Prof. Carlos Coelho. Ser encantador, que emanava luz de brilho intenso, infinitamente amplificada pelo fato de partir de um homem simples, humilde e de inteligência inconteste.

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Com o tempo, tornamo-nos amigos. Maranhense de São Luís, Carlos fez mestrado em Ortodontia na Faculdade de Odontologia de Piracicaba. Antes, ele era técnico em eletrônica. Também complementava a renda dando aulas de inglês. Contou-me que, ao ser aprovado no seu curso de mestrado, ligou para o professor Muller de Araújo, então coordenador do programa, lamentando que, a despeito da aprovação, teria dificuldades para estar presente na data definida para início do curso. O empecilho era financeiro, pois precisaria de tempo para vender a pequena oficina de eletrônica e o seu fusquinha.

Não esperava ser aprovado, dada a grande concorrência e suas dificuldades. Em grata surpresa, o Prof. Araújo, além de aceitar a sua prorrogação, enalteceu as suas qualidades e disse-lhe que era ele, o Prof. Araújo, quem fazia questão da presença daquele aluno, dado o sacrifício que faria para seguir o curso.

Carlos contou-me essa história algumas vezes, e eu nunca o interrompi porque os seus olhos sempre brilhavam com a lembrança do estimado professor, um perfume de gratidão. Contou-me também sobre o seu primeiro contato com uma máquina de solda a ponto. Era um equipamento importado, pertencente a uma de suas professoras. Na época, o dispositivo era pouco comum no Brasil e sonho de consumo de qualquer ortodontista. Carlos usou os seus conhecimentos de eletrônica e fez, ele mesmo, uma cópia da máquina de solda, a partir da análise do equipamento importado. Descarrilaram-se encomendas.

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Após a conclusão do mestrado, Carlos retornou ao Maranhão e ingressou como professor na Faculdade de Odontologia da Universidade Federal do Maranhão. Casou-se com Rosa, com quem teve dois filhos, Eduardo e Fábio. Mas foi na prática privada que o Prof. Coelho iniciou a concepção da sua maior obra, um terceiro filho, podemos assim dizer: o aparelho de protração mandibular (APM). Uma engenhoca, como ele mesmo dizia, que promovia o avanço da mandíbula no intuito de tratar as más oclusões de Classe II.

O que me impressionou foi o fato de Carlos ter se formado em uma época na qual avanços mandibulares soavam como heresias dentro da Ortodontia. Os poucos ortodontistas que se lançavam à experimentação eram quase execrados do meio. Percebe-se, destarte, um profissional atemporal e distante dos preconceitos.

No início do desenvolvimento da sua obra, Carlos logo percebeu a fragilidade do sistema, relatando constantes quebras. Aceitou com humildade as limitações e, com perseverança e inteligência, melhorou a obra até chegar ao modelo IV, mais estável e confortável.

APM IV, em artigo de Carlos Martins Coelho Filho publicado em 2002, na DPJO (Foto: DentalGO)

Atualmente, o APM, ou algumas de suas modificações, é utilizado por grande parte dos ortodontistas brasileiros. O aparelho não ficou tão conhecido fora do Brasil, a despeito das diversas publicações internacionais. Não é difícil compreender o motivo. Certo dia, perguntei-lhe se nunca havia pensado em comercializar a sua invenção por meio de uma grande empresa. Carlos, na sua infinita humildade — de dar raiva até —, relatou que uma grande companhia americana já havia lhe oferecido uma proposta comercial, a qual recusara. Ele gostaria que a sua obra fosse de livre acesso a qualquer colega, no modelo “faça você mesmo”. Ao cérebro inventor de Carlos não foi concedido o córtex empresarial.

A Ortodontia brasileira deve muito ao inventor Coelho Filho; e nós, seus admiradores, temos uma dívida imensurável com esse nordestino, clínico alvissareiro e ser humano altruísta. Um profissional de conduta ilibada e um amigo de sagacidade iluminada e fidalguia, cujo legado não cabe nestas páginas ou em todos os volumes deste periódico…

Mas no seu coração, esse sim, coube. E ele, simplesmente, nos doou, divinamente, o que criou. A nobreza estampa-se no passo a passo, no pouco a pouco, e são pequenas histórias que tornam um homem grande e comporão um legado indestrutível.

*Texto publicado originalmente na edição de março de 2015 da DPJO, mês em que Carlos Martins Coelho Filho faleceu. 

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