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Sutilezas da comunicação científica: precisão, sinonímia, “Material e Métodos” e “biomateriais”

Resumo

O tópico intitulado “Material e Métodos” ainda não é usado assim, de forma uniforme, em todos os periódicos e instituições. Equivocadamente, ainda se usa a forma “Materiais e Métodos” ou “Material e Método”. O termo “material”, no singular, representa um substantivo coletivo, no qual está inserida uma pluralidade em si mesmo. O termo “material”, na forma singular, também representa um adjetivo qualificador do que é relativo a matéria ou substância sólida, líquida ou gasosa que ocupa lugar no espaço como um agregado de partículas com massa.

O termo “métodos” deve ser empregado no plural por não haver um termo coletivo que abarque todos os vários tipos de manobras utilizadas na elaboração da pesquisa, sendo praticamente impossível apenas o emprego de uma única forma de investigar, pois inclui-se a leitura, exames, cálculos, testes e ilustrações.

Alguns produtos chamados de “materiais” ou “biomateriais” precisam ter os termos identificadores readaptados, pois não coadunam com os verdadeiros significados em nossa língua — ou muda-se a língua, o que é possível, pois ela é dinâmica! No presente artigo, são apresentados alguns fundamentos para embasar uma reflexão e posicionamento do leitor sobre o assunto.

Palavras-chave: Material. Materiais. Material e métodos. Metodologia. Biocompatibilidade. Biomateriais.

 

A terminologia precisa é muito importante, por três razões

A comunicação deve ser precisa. Cada palavra tem um significado específico, ou mais que um, e deve ser escolhida com maestria, tal qual o operador do bisturi na cirurgia. Na comunicação científica, deve ser ainda mais precisa, para não dar espaços a dúvidas impertinentes. Eis três razões pelas quais devemos nos guiar para procurar a precisão das palavras e seus reais significados:

1ª) As quatro facetas do conceito contemporâneo de hereditariedade humana são: A) a genética; B) a epigenética, caracterizada pelo ambiente interferindo na genética sem induzir mutações; C) o comportamento promovendo o aprendizado social pela postura, hábitos e formas de reação, induzindo os novos membros a desenvolver características do grupo ou da família; e D) a simbologia da comunicação, na qual os símbolos da linguagem entre membros de uma geração para com a outra, como escrita, fala e outros ícones formam o patrimônio cultural exclusivo da humanidade.

Essas quatro facetas representam a forma de diálogo com as demais gerações, o que implica em deixar um mundo codificado e melhorado para as futuras gerações. A simbologia da comunicação é exclusiva dos humanos, e quanto mais preciso e simples for a simbologia da linguagem, mais nossas futuras gerações nos compreenderão!

As mutações do DNA com vistas a melhorar nosso corpo para nos adaptarmos ao mundo são muito lentas, ocorrem a cada 100 anos, em média. Da mesma forma, o homem não consegue se adaptar e melhorar a capacidade de armazenamento de seu cérebro, pois deveriam ocorrer mudanças em seu tamanho, e isso dificultaria a gestação e o parto.

Sem adaptar-se pelo DNA e ou pelo tamanho limitado de seu cérebro, o homem aprendeu a transmitir informações para as futuras gerações de uma outra forma, deixando registros por meio de símbolos na linguagem da comunicação. Para isso, constrói cada vez mais e melhores máquinas e sistemas de armazenamento de informações transgeracionais na forma de palavras e símbolos.

2ª) Cada palavra tem seu significado e, ao mesmo tempo, representa a chave ou uma senha que, uma vez colocada no banco de dados, no computador ou na máquina que se queira, vai resgatar tudo que foi armazenado pela geração atual e anterior sobre aquele assunto. Uma letra errada, e toda a busca vai ficar alterada, modificada, imperfeita ou incompleta.

 

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Uma palavra inoportuna no resgate de informações sobre algo relacionado ou armazenado em alguma máquina, vai trazer muitas informações totalmente equivocadas.

Os bancos de dados — as verdadeiras bibliotecas de hoje — serão melhor utilizados quanto mais precisas forem as palavras-chave e/ou as senhas. Ou melhor, quanto mais precisa e certeira for a palavra empregada, mais completa e rápida será a pesquisa, o trabalho, o uso da máquina e o tempo gasto.

3ª) Até bem pouco tempo era muito elegante e erudito, em um mesmo texto, referir-se ao mesmo fenômeno ou objeto com várias palavras diferentes. Hoje, isso tende a ser visto como antiquado e inoportuno. Além de dificultar a compreensão, tira sua precisão e amplia o número de palavras-chave ou senhas a serem utilizadas nos bancos de dados para resgatar o que se pensa e se pesquisa na atual geração, bem como nas anteriores.

O resgate de informações anteriores e atuais sobre um assunto também era chamado de levantamento bibliográfico, e feito em um conjunto de livros de registros conhecidos como índices, ou “obras de referência”, nos quais, a cada mês ou ano, se listava todas as obras publicadas no mundo. Era um trabalho quase insano, mas indispensável, que a informática veio a otimizar!

Nas bibliotecas analógicas ou físicas, as prateleiras orgulhosamente apresentavam as obras de referências como o Current Contents, Index Medicus Literature, Index Dental Literature, Biological Abstracts e muitos outros, verdadeiros bancos de dados utilizados apenas manualmente. Quanto mais dessas obras uma biblioteca apresentava em seu acervo, significava que ela tinha mais informações do que a outra sobre o acervo do conhecimento humano: ela era mais importante e melhor no contexto geral!

Até hoje, muitos livros quando se referem a uma doença, produto químico ou fenômeno físico, antes de começar o texto sobre cada assunto, já no primeiro parágrafo, coloca a sinonímia, um termo coletivo que abarca todos nomes para um mesmo evento. Algumas doenças, substâncias e fenômenos chegam a ter 20 a 50 nomes, uma verdadeira teia de dificuldades para o resgate de informações em um levantamento sobre o assunto, quase que uma verdadeira armadilha intelectual ,e quase por ser involuntária!

Na ciência e em toda a amplitude do conhecimento humano poderia se fazer um movimento de conscientização para diminuir ou acabar de vez com a sinonímia: em nada ajuda e em tudo atrapalha. Usar uma sinonímia vasta em um mesmo texto confunde, atrapalha a compreensão e dificulta o futuro resgate desse pelas futuras gerações. Abusar da sinonímia pode representar apenas uma pseudoerudição.

 

“Material e métodos” ou “Materiais e métodos” ou “Material e Método”?

Alguns cuidados terminológicos devem ser adotados ao mencionar os vários tipos de matéria ou material aplicados no corpo humano com várias finalidades, inclusive para facilitar e ou acelerar o reparo ósseo.

Os dicionários Aurélio e Houaiss assim se referem ao termo “material ”:

Material (adjetivo): 1. Pertencente ou relativo à matéria; 2. Não espiritual; 3. Grosseiro, rude, bronco; 4. Maciço, pesado; 5. Prático, utilitário, objetivo; 6. Constituído por matéria.

Em continuidade ao significado do termo, assim afirmam esses dicionários:

Material (substantivo masculino): 7. Aquilo que é relativo à matéria; 8. Conjunto de objetos, instrumentos, máquinas e peças que constituem ou formam uma obra, construção, etc.; 9. Petrechos e utensílios; 10. Aquilo que compõe o corpo de alguma coisa.

Em relação à palavra matéria, os dois dicionários assim discorrem:

Matéria (substantivo feminino): 1. Qualquer substância sólida, líquida ou gasosa que ocupa lugar no espaço; 2. Agregado de partículas que possuem massa; 3. Substância corpórea de determinada natureza.

No mundo acadêmico, muitas vezes, “não se tem tempo” para alguns detalhes sutis, como uma terminologia “minuciosamente” adequada. A sutileza, para alguns filósofos mais populares, pode ser a morada de seres sagrados ou malditos, como deuses ou diabos: então, por via das dúvidas, tomemos cuidado! Essa mensagem filosófica, muitas vezes considerada de mau gosto, implica em dizer: o erro ou o acerto de uma hipótese ou teoria pode estar em um pequeno detalhe, em um nome, em um termo ou em uma identificação equivocada e/ou inoportuna.

Entre as perguntas comuns em certos corredores acadêmicos está: o termo material se usa no singular ou no plural?

O termo “material” pode ter duas conotações: uma individual, enquanto adjetivo que dá qualidade a alguma coisa; e uma outra coletiva, como um substantivo que se refere a um conjunto ou coletivo de objetos. O substantivo coletivo, mesmo no singular, indica um agrupamento, multiplicidade de seres de uma mesma espécie.

 

 

O termo material, como substantivo coletivo, significa um conjunto de produtos utilizados para uma determinada situação. Tal como “manada” representa um conjunto de elefantes e “molho” é o substantivo coletivo de chaves, os produtos e objetos utilizados para uma determinada finalidade específica como uma obra ou pesquisa deve ser chamado pelo substantivo coletivo material.

O uso do substantivo coletivo “material” no plural é muito restrito: quando se quer referir a vários conjuntos ou coletivos, como, por exemplo, as várias manadas ou molhos. Por isso que costumeiramente se afirma de forma generalizada que: o termo material, como substantivo, não se usa no plural!

Nos capítulos ou tópicos em que se descreve a metodologia científica utilizada em uma tese ou pesquisa para se publicar na forma de artigo, se diz “Material e Métodos”, pois, para realizar determinada investigação, utilizou-se de muitos objetos, instrumentos, produtos e peças, que — no conjunto — devem ser chamados de “material”, no singular, por se tratar de uma conotação coletiva a esse substantivo. Por exemplo: 1. Esta loja vende material para construção, ou seja, comercializa os mais variados produtos, instrumentos e o que mais se imagina de concreto para essa finalidade.

 

 

 

Na tese ou no artigo, o capítulo “Material e Métodos” está se referindo a todo o conjunto de objetos e produtos. Quanto ao termo “métodos”, não há um termo coletivo para identificar um conjunto de métodos, e dificilmente se adota apenas um método em uma pesquisa: geralmente se tem métodos imaginológicos, estatísticos, cirúrgicos, microscópicos e fotográficos, tornando-se quase sempre inoportuno o uso de “Material e Método”, ambos no singular. O caminho em que usa vários métodos para se chegar aos resultados chama-se metodologia.

Essa é a lógica ou razão do uso do termo “Material e Métodos”, muito embora, por décadas, se tenha utilizado o termo “Materiais e Métodos”, ainda hoje recomendado por muitas instituições e periódicos em seus manuais aos estudantes e pesquisadores. Sutilezas em geral estão relacionadas a requintes e precisão extrema.

Em alguns trabalhos, instituições e periódicos se permite ou recomenda-se o termo “Pacientes e Métodos”, por considerar que os seres envolvidos nas análises tem um lado transcendental, relacionado ao espírito ou alma, de modo que usar “Material e Métodos” não se aplicaria para os humanos. Se assim fosse, mais preciso para identificar esse capítulo seria utilizar o termo “Pacientes, material e métodos”, pois ainda se continua usando um conjunto de objetos, produtos e outros utensílios na realização desse mesmo trabalho. Mais preciso seria, ainda, já que nem sempre os seres humanos que colaboraram com a pesquisa estão doentes, utilizar o termo “Pessoas, material e métodos”. Mas, em geral, no mundo da ciência mais avançada, utiliza-se mesmo o termo “Material e Métodos”, mesmo quando há pessoas na amostra.

 

O uso do termo “biomaterial/biomateriais”: 

e agora?

Não podemos mudar os conceitos básicos e nem mesmo violentar a língua pátria e criarmos dialetos de significados restritos a algum segmento — como uma especialidade — na sociedade em que vivemos.

Se o termo “material” representa, como substantivo, um termo coletivo, o que devemos fazer com o termo “biomaterial/biomateriais”? Ao se referir como “biomaterial” o produto colocado na loja cirúrgica para, de alguma forma, melhorar o reparo ósseo, estamos nos referindo a um adjetivo, e, logo, querendo dizer, segundo os dicionários, que o objeto ou produto colocado ali é relativo à matéria; não é espiritual; é grosseiro, rude, bronco; maciço ou pesado; prático, utilitário ou objetivo.

De forma mais precisa, embora possa parecer muito diferente do que estamos acostumados a usar, dever-se-ia utilizar o termo, ou palavra, matéria no lugar de “material”, como usamos na forma de adjetivo. Como anteriormente apresentado, matéria é qualquer substância sólida, líquida ou gasosa que ocupa lugar no espaço, pode representar um agregado de partículas com massa ou uma substância corpórea de qualquer natureza.

Por outro lado, analisemos o prefixo “bio”, como elemento de composição de palavras de acordo com os dicionários:

Bio: Elemento de composição derivado do grego = vida. Bio denota a existência de vida. Por exemplo: biológico, biografia, etc.

Por sua vez, vida representa um conjunto de propriedades e qualidades graças às quais animais e plantas, ao contrário dos organismos mortos ou da matéria bruta, se mantém em contínua atividade manifestada em funções orgânicas, tais como o metabolismo, crescimento, reação a estímulos, adaptação ao meio e reprodução. Vida é igual a existência. Vida é referida, ainda, como estado ou condição dos organismos que se mantém nessa atividade desde o nascimento até a morte.

Quando se refere a um “biomaterial” utilizado na Implantodontia, provavelmente quer se afirmar como algo ou um produto relativo a uma matéria. O termo “material” quando não é usado como substantivo coletivo, trata-se de um adjetivo para dar qualidade àquilo relativo à matéria. O termo “bio” acrescentado não tem sentido, haja vista que a vida naquele produto a muito se extinguiu.

Uma sugestão pode ser o uso de termos como: matéria ou produtos com bioafinidade para serem utilizados no reparo ósseo, ou, simplesmente, matéria ou “produtos bioafins”, ou outra terminologia a ser sugerida para identificar com maior precisão esses produtos amplamente utilizados.

Bioafinidade representa uma palavra muito utilizada na química para a propriedade que significa: atração específica entre uma biomolécula e outra molécula biológica ou não. O termo biocompatibilidade, por sua vez, não rivaliza com bioafinidade, pois significa compatível com a vida de um organismo vivo, não importando se agride localmente ou não os tecidos vizinhos, mas não ameaça a vida do organismo como um todo. Biocompatibilidade tem grande amplitude, haja vista que importa ter a propriedade de manter o organismo como um todo.

 

Considerações finais: o correto é 

“Material e Métodos” 

Nos artigos de pesquisa, dissertações e teses, o capítulo intitulado “Material e Métodos” ainda não é assim usado de forma uniforme em todos os periódicos e instituições. Ainda se tem muitas dúvidas, pois, durante muitos anos ou décadas, se utilizou equivocadamente a forma “Materiais e Métodos” e, mais recentemente, como uma distorção das correções, apareceu a forma “Material e Método”. O termo “material” deve estar sempre no singular, pois representa um substantivo coletivo no qual está inserido uma pluralidade em si mesmo, pois representa um conjunto de peças, utensílios, instrumentos, objetos e produtos utilizados para a pesquisa.

O termo “métodos” nesses capítulos investigativos deve ser empregado no plural por não ter um termo coletivo que abarque todos os vários tipos de manobras utilizadas na elaboração da pesquisa, sendo praticamente impossível apenas o emprego de uma única forma de investigar, pois inclui-se leitura, exames, testes, cálculos e ilustrações.

Por sua vez, o termo “material” para identificar um produto qualquer não deve ser utilizado, pois, na forma singular, essa palavra representa um adjetivo, indicando algo relativo a uma matéria: substância sólida, líquida ou gasosa que ocupa lugar no espaço, como um agregado de partículas que possuem massa. 

Apesar do uso frequente, o uso da palavra “material” representa um substantivo coletivo, ou, então, um adjetivo qualificador quando utilizado para identificar ou qualificar algo singular.

Corrigir essas distorções terminológicas no dia a dia requer muita persistência. Quiçá, o ser dinâmico que a língua representa possa, ao longo dos anos e décadas, abarcar esses significados, até aqui impróprios; ou, então, uma alternativa viável seria substituímos o termo “material” por matéria todas as vezes que representar um substantivo concreto e singular.

 

Como citar este artigo:

Consolaro A. Subtleties of scientific communication: Precision, synonym, “Material and Methods” and “biomaterials”. Dental Press Implantol. 2013 July-Sept;7(3):32-9.

» O autor declara não ter interesses associativos, comerciais, de propriedade ou financeiros que representem conflito de interesse nos produtos e companhias descritos nesse artigo.

 

Endereço para correspondência

Alberto Consolaro

consolaro@uol.com.br

 

Enviado em: 19/02/2013

Revisado e aceito: 04/03/2013

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