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Reabilitação bucal estética em pacientes bulímicos: relato de caso

Publicado originalmente na Revista Dental Press de Estética

Autores: Weider de Oliveira Silva e Rames Basílio

A erosão é a dissolução irreversível dos tecidos dentários devido a um processo químico decorrente da atuação de ácidos, sem o envolvimento de bactérias, e que pode ocorrer em ambas as dentições. O consumo de substâncias ácidas ou o refluxo do suco gástrico provocado por vômitos autoinduzidos, comum em pacientes com bulimia, são os responsáveis pela dissolução dentária. Esse trabalho relata um caso clínico no qual, após o tratamento da bulimia, foram realizados procedimentos adesivos estéticos para a reabilitação bucal da paciente.

Introdução

Pacientes que necessitam de reabilitações extensas e complexas precisam de um planejamento multidisciplinar, integrado dentro das diversas áreas da Odontologia, para que seja alcançado um resultado final previsível e agradável1,2,3.

Devido aos hábitos e anseios modernos, há uma preocupação crescente com relação aos dentes em meio bucal ácido por longos períodos. Diversos alimentos, como frutas, vinagres, refrigerantes e vinhos, entre outros, associados a maus hábitos de higiene bucal, são causas de erosão dentária.

A palavra erosão é derivada do verbo latino erodere, que significa “corroer”, e designa a destruição da superfície de alguma matéria, usualmente por processos químicos ou eletrolíticos4. O termo “erosão dentária” é usado para descrever uma patologia crônica, localizada, caracterizada pela perda de tecido duro por ataque químico ou dissolução da superfície dentária, sem o envolvimento de bactérias5.

Além da dieta, a erosão pode ser causada pela presença de ácidos gástricos na boca, provenientes da bulimia, a qual consiste em uma desordem neurológica em que o paciente frequentemente realiza vômitos autoinduzidos6.

O objetivo desse trabalho é demonstrar uma abordagem multidisciplinar em que, após a conclusão do tratamento médico da paciente, foi realizada a reabilitação estética e funcional de todos os elementos dentários acometidos pela erosão.

Revisão de literatura

A erosão é o resultado de múltiplos fatores etiológicos, produzindo vários efeitos desagradáveis ao paciente, pois, além de comprometer a estética, acarreta o desenvolvimento de áreas de sensibilidade, possibilidade de envolvimento pulpar, fratura dentária, perda de dimensão vertical e recessão gengival7,8.

A erosão dentária pode ser de origem intrínseca, extrínseca ou idiopática. Os tipos relacionados à bulimia são de origem intrínseca, que são resultados da ação do ácido endógeno, ou seja, do ácido gástrico que entra em contato com os dentes durante a regurgitação ou durante o refluxo alimentar9.

Definida como a perda irreversível de estrutura dentária, a erosão ácida ocorre devido a um processo químico decorrente da atuação de ácidos com pH inferior a 5,5, que causam a dissolução da hidroxiapatita e da fluorapatita, constituintes do esmalte dentário10,11,12. Sua ação não possui nenhum envolvimento bacteriano direto13. Devido à perda de substâncias dentárias, o paciente pode apresentar bordas incisais finas ou fraturadas, diastemas e pseudomordida aberta, podendo ocorrer perda de dimensão vertical devido ao desgaste das superfícies oclusais dos dentes posteriores14.

Nos últimos anos, tem-se observado um aumento no número de lesões de erosão, as quais estão associadas ao elevado consumo de sucos e frutas ácidas, assim como de bebidas carbonadas. A acidez dessas substâncias deve-se à presença de ácido cítrico, tartárico ou málico15,16.

Outra causa frequente associada à erosão dentária é a bulimia, expressão de origem grega que significa “fome de boi”, e que, de acordo com a Classificação Internacional das Doenças, é uma síndrome caracterizada por um padrão de hiperfagia, seguida de condutas compensatórias inapropriadas17,18.

Pacientes portadores de tal distúrbio autoinduzem vômito diversas vezes ao dia, a fim de manter seu peso corporal, sem abrir mão de comer compulsivamente, de forma rápida, uma grande quantidade de alimentos com pouco ou nenhum prazer19,20, estimulando o refluxo da garganta com o dedo ou instrumentos (escova de dente, talheres, entre outros), resultando na regurgitação14.

Como o suco gástrico humano possui pH ácido, ele tem a capacidade de dissolver tecidos dentários21, motivo pelo qual a regurgitação frequente resulta numa distribuição típica de erosão dentária nas arcadas, correspondendo à trajetória do ácido gástrico representado pelo ácido clorídrico regurgitado pelo dorso da língua ao longo das superfícies oclusais dos dentes superiores e inferiores, e no vestíbulo mandibular.

Esse tipo de erosão parece afetar os dentes superiores e inferiores e foi, durante algum tempo, denominado de perimólise. A gravidade e a progressão da erosão não dependem apenas da frequência e duração do vômito, mas, também, de hábitos de higiene bucal, como a escovação logo após a regurgitação, pois o esmalte encontra-se desorganizado e pode ser facilmente removido pela abrasão durante a higiene bucal19.

A saliva é o fator mais importante em relação à modificação dos efeitos da erosão dentária, pois exerce função de proteção aos dentes por meio da diluição ou eliminação dos agentes erosivos da boca e da neutralização de ácidos, atuando na manutenção de um meio supersaturado próximo à superfície dentária, devido à presença de cálcio e fosfato13.

Pacientes portadores de erosão dentária devem reduzir a frequência do consumo de alimentos ácidos, e as bebidas devem ser consumidas com o auxílio de canudo, para diminuir a área de contato com a estrutura dentária13.

Medidas preventivas por parte do profissional da Odontologia devem ser adotadas, como aplicação de gel de fluoreto altamente concentrado e monitoramento do progresso das lesões a cada quatro meses, ao passo que os pacientes devem usar dentifrícios com baixa abrasividade, contendo flúor e bicarbonato, não reter alimentos e bebidas ácidas na boca, e tomar bebidas ácidas com auxílio de canudos22.

Aumentar o fluxo salivar utilizando gomas de mascar e proteger quimicamente a superfície dentária, logo após a ingestão de alimentos ácidos, pelo consumo de substâncias neutras como leite e queijos, são medidas preventivas contra a erosão ácida, assim como a proteção mecânica das superfícies erodidas com selantes e vernizes. O tratamento restaurador das lesões deve ser realizado se elas comprometerem a estética, a função ou o conforto do paciente23.

Para dentes com erosões severas, o tratamento torna-se mais complexo, pois, geralmente, o paciente já perdeu dimensão vertical de oclusão, apresenta sensibilidade dentária e estética comprometida. Após a remoção da causa da erosão, restabelece-se a dimensão vertical perdida com o auxílio de placas de acrílico ou coroas provisórias e, em seguida, procedimentos diretos ou indiretos são indicados como tratamento reabilitador24,25.

Os métodos restauradores adesivos, baseados nos trabalhos de condicionamento ácido do esmalte, iniciados por Buonocore, em 1955, e posteriormente com o condicionamento ácido da dentina, proposto por Fusayama, além de reforçarem a estrutura dentária remanescente, permitem um desgaste dentário mínimo26,27,28. Apesar dos dentes acometidos pela erosão possuírem maior quantidade de dentina que esmalte para a obtenção da adesão, estudos recentes têm demonstrado que, com a evolução dos materiais adesivos, a adesão é eficaz em ambos os substratos, fatores que tornam as técnicas adesivas a primeira escolha no seu tratamento29-32.

Diante das possibilidades adesivas, estéticas e de resistência mecânica apresentadas pelos materiais restauradores atuais, a estrutura dentária do dente deve ser preservada sempre que possível. Dependendo do grau de desgaste dentário, a reabilitação completa dos dentes afetados pode ser realizada por meio do uso de resinas compostas, cerômeros ou cerâmicas25.

Dentes com perda dentária menor que 50% de sua estrutura devem ser reabilitados com resinas compostas diretas, uma vez que apresentam baixo custo, aliado a boas propriedades mecânicas e ópticas. Já os cerômeros e cerâmicas são preferencialmente utilizados em elementos com maiores comprometimentos dentários, uma vez que apresentam propriedades superiores aos materiais diretos25,33,34,35.

Caso clínico

Paciente do sexo feminino, 29 anos de idade, apresentou-se com o objetivo de melhorar a estética de seu sorriso, desejando que ao final do tratamento seus dentes se tornassem mais aparentes.

Durante a anamnese, a paciente relatou ter apresentado bulimia por um período aproximado de seis anos, já completamente tratada há mais de dois anos.

Ao exame clínico, observou-se boa higienização, perda de estrutura dentária generalizada, principalmente na região lingual dos dentes anteriores e oclusal dos posteriores, entretanto, sem qualquer tipo de sintomatologia dolorosa. Foi verificada a perda da dimensão vertical e ausência de proporção correta dos dentes entre si, e em relação à face da paciente (Fig. 1 a 4).

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Após análise criteriosa de modelos de estudos e radiografias (Fig. 5), foi realizado planejamento multidisciplinar. O caso foi iniciado com a profilaxia de todos os dentes, seguida da remoção de todas as restaurações posteriores superiores.

Esses dentes foram preenchidos com resina composta fotopolimerizável, preparados para onlays/overlays moldados com silicone de adição e, em seguida, foram confeccionados provisórios para esses elementos (Fig. 6, 7).

Na sessão seguinte foi realizada a cimentação das onlays/overlays superiores em cerômero, com cimento resinoso autocondicionante dual (Fig. 8, 9). Restaurações incisais provisórias com resina composta foram feitas nos elementos anteriores superiores, devido à dimensão vertical ter sido restabelecida (Fig. 10).

Na terceira sessão clínica, procedeu-se à gengivoplastia com osteotomia mínima de aproximadamente 1mm nos elementos anterossuperiores (Fig. 11). Após cicatrização inicial de 6 dias, facetas diretas com resina composta, sem desgaste dentário, por meio da técnica adesiva, em que houve o condicionamento do esmalte com ácido fosfórico 37% e adesivo, foram realizadas do elemento 15 ao 25 (Fig. 12, 13, 14).

Na outra sessão clínica, as restaurações dos dentes posteroinferiores foram removidas e as cavidades preenchidas com resina composta. Todos os elementos foram preparados para onlays/inlays em cerômero. Apenas os elementos 37 e 47 foram preparados para coroas totais metalocerâmicas, pois já possuíam coroas totais. Foi feita moldagem com silicone de adição e confecção de provisórios para esses elementos (Fig. 15, 16).

Na quinta sessão clínica, foi realizada a cimentação das inlays/onlays inferiores em cerômero, com cimento resinoso autocondicionante dual. As coroas metalocerâmicas foram cimentadas diretamente sobre os preparos com cimento fosfato de zinco, realizando apenas profilaxia prévia dos dentes e das peças (Fig. 17). Realizaram-se facetas diretas com resina composta sem desgaste dentário por meio da técnica adesiva, em que houve o condicionamento do esmalte com ácido fosfórico 37% e aplicação de adesivo dos elementos 33 ao 43 (Fig. 18, 19).

Após acabamento e polimento final, orientações de dieta foram fornecidas para a paciente e uma placa miorrelaxante em acrílico foi instalada (Fig. 20, 21, 22).

Discussão

A perda da estrutura do dente causada pela erosão ácida não pode ser revertida, razão pela qual é importante compreender o problema e conscientizar-se dos sinais e sintomas4,5,7-10. A estrutura dentária se torna mais vulnerável em meio onde o pH é menor que 5,5, causando danos às estruturas7,8,9.

Os hábitos alimentares e a frequência em que ocorrem interferem proporcionalmente no processo de desmineralização do esmalte dentário6-11.

O desenvolvimento de materiais restauradores adesivos tem contribuído positivamente nos tratamentos reabilitadores. Após o surgimento das técnicas adesivas, iniciadas por Buonocore em 1955, os profissionais da Odontologia passaram a conviver com uma nova concepção no tratamento restaurador, que é a preservação da estrutura dentária25.

Entretanto, a adesão em dentes com grande quantidade de dentina e pouco remanescente de esmalte ainda é pouco estudada, embora trabalhos recentes tenham indicado que a união obtida com os materiais adesivos atuais é adequada29-32.

Nesse sentido, a utilização de procedimentos adesivos diretos, como facetas de resina composta, e de procedimentos adesivos indiretos, como as peças de cerâmica e cerômero, são opções para a reabilitação de pacientes portadores de dentes com lesões ácidas.

 Conclusão

A situação clínica relatada mostra que os avanços no desenvolvimento dos materiais adesivos, aliados à anamnese correta, diagnóstico precoce, orientação de dieta e às técnicas de preparo minimamente invasivas, permitem a resolução de situações clínicas com deficiência estética e funcional, como nos casos de lesões ácidas, possibilitando a conclusão do tratamento em poucas sessões clínicas.

 

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