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Movimentação dentária e aplicabilidade na clínica ortodôntica

A Ortodontia apresenta como um de seus pilares de sustentação as reações biológicas provenientes da indução mecânica. Desde seu início, vários estudos foram realizados para esclarecer os eventos biológicos decorrentes da movimentação dentária sob indução mecânica. Entretanto, mesmo sabendo-se que entre os procedimentos mecânicos e os fenômenos biológicos que acontecem no cotidiano ortodôntico não deve ocorrer disparidade, frequentemente observa-se uma preponderância para a busca do tipo de aparelhagem e o emprego de forças controladas, principalmente pelos fios. Esses aspectos deixam transparecer, principalmente para o profissional menos experiente, que somente o controle mecânico rege a movimentação dentária.

Um exemplo que enfatiza exclusivamente o procedimento mecânico nos cursos de Ortodontia é o typodont. Convém salientar que essa metodologia de ensino é válida para simular a movimentação dentária no aspecto técnico-mecânico, porém, o conhecimento biológico da movimentação deve ter o mesmo nível de importância e não pode haver dicotomia; caso contrário, o resultado da movimentação ortodôntica pode causar prejuízos nas estruturas radiculares, óssea e periodontais, bem como comprometer as diversas estruturas em longo prazo.

Esses detalhes deixam claro que os conhecimentos biológicos básicos não devem se desvencilhar da clínica ortodôntica. No entanto, observa-se que, de uma forma não rara, tanto os profissionais quanto os pacientes estabelecem como prioridades a estética e, em segundo lugar, a função, fazendo pouca relação com os eventos biológicos desencadeados no ligamento periodontal. Dessa forma, para controlar e “respeitar” os principais eventos biológicos que acontecem durante a movimentação dentária induzida, é primordial que se conheça as características de toda a estrutura periodontal. Nessa linha de raciocínio, os níveis de força e distribuição de estresse, bem como seu tempo de atuação adequado nas estruturas periodontais, não dependem exclusivamente da alta tecnologia contida nos diversos tipos de ligas e/ou da estética da aparelhagem. Além disso, a informação universalmente aceita na Ortodontia de que “a força ortodôntica ideal deve promover o máximo de movimentação dentária com o mínimo de danos aos tecidos” implica não somente no controle da intensidade de força, mas também da direção de seus vetores, tendo como parâmetro as localizações dos centros de resistência e de rotação dentária1.

O aumento frenético dos mais variados tipos de aparelhagem, bem como a sua sofisticação, não pode ofuscar a importância da dinâmica dos eventos biológicos decorrentes da movimentação dentária. Por isso, nesse artigo serão abordados vários aspectos teóricos e clínicos que envolvem a Ortodontia, sustentados por trabalhos científicos.

 

Força ideal em Ortodontia

Desde os primórdios da Ortodontia, existe uma preocupação para se determinar a intensidade da força ideal para a movimentação dentária. Em 1932, Schwarz2 relatou, de forma coerente, que o nível ideal de força deveria ser de 20 a 26g/cm2 de superfície radicular, ou seja, equivalente à pressão capilar de 15 a 20mmHg. Convém salientar que, atualmente, qualquer citação sobre magnitude de força deve ser expressa em Newtons (N). A unidade grama (g) refere-se à massa, e não deve ser utilizada para expressar o nível de força. Para facilitar a conversão das unidades já divulgadas expressas em gramas, deve-se levar em consideração que 1N equivale a 101,937g; ou 1g, a 0,00981N. Considerando-se que a unidade centi (c) constitui uma medida 100 vezes menor, conclui-se que 1g equivale a 0,981cN, ou que 1g corresponde a aproximadamente 1cN3. Desse modo, com a conversão, os valores de força ideal para Schwarz devem ser de 20 a 26cN/cm2.

Esses valores são parâmetros importantes para se entender que o estresse acima da pressão capilar tende a alterar o fluxo sanguíneo e interferir no mecanismo biológico do ligamento periodontal, osso alveolar e, também, no cemento radicular. Entretanto, como ainda não existem dispositivos que permitam realizar esse tipo de mensuração, consequentemente não há um consenso, nem evidências científicas a respeito de um nível ou valores de força ideal que regem a biomecânica da movimentação ortodôntica. Além disso, a ausência de parâmetros de força seguros relaciona-se com a dificuldade de calcular a distribuição das áreas de estresse, o controle do movimento de translação ou inclinação, características morfológicas das raízes e do osso alveolar, e a quantidade de movimentação nas diversas fases4.

Quantidades de movimentação dentária semelhantes podem ocorrer com diferentes níveis de força. A variação na taxa de deslocamento dentário foi relacionada, principalmente, a diferentes aspectos das estruturas periodontais, e não ao nível de força5,6. Forças mínimas são capazes de iniciar a reação do tecido, e isso implica que os níveis de força de alta magnitude podem iludir o profissional com relação à quantidade de movimentação dentária, podendo comprometer a qualidade dos efeitos biológicos e causar efeitos negativos, tais como hialinização e atraso da movimentação dentária7.

O ortodontista deve reconhecer que é mais apropriado considerar o tipo de força, levando-se em consideração o tempo de atuação e as características dos tecidos submetidos ao estresse, do que a sua intensidade. As forças de baixa e de alta magnitude diferenciam-se pela capacidade de produzir hialinização5,8. Nas forças de baixa magnitude, o tecido hialino pode ser eliminado de forma mais rápida, quando comparadas com as forças de alta magnitude. Sabe-se que a hialinização é uma característica microscópica inerente aos mais variados tipos de movimentação dentária induzida, sendo observada em praticamente todos os níveis de força. São áreas que apresentam alterações nos vasos sanguíneos que geram hipóxia e, consequentemente, fuga e/ou morte celular, na qual evidencia-se uma região homogênea livre de núcleos ou células no ligamento periodontal, com aspecto eosinófilo e que assume o aspecto vítreo, ou hialino, da matriz extracelular9.

Diante das características microscópicas da hialinização, conclui-se que essa fase não se enquadra como uma situação favorável para a movimentação dentária induzida mecanicamente, no entanto, torna-se relevante procurar formas de se controlar sua extensão, haja vista que, mesmo com forças de baixa magnitude (como 5cN), foram observadas áreas de hialinização10,11.

Clinicamente, a hialinização corresponde à segunda fase do movimento dentário, frequentemente evidenciada a partir de 24 a 48 horas, se estende, em média, por 21 a 30 dias. Nesse período, ocorrerá no máximo um modesto deslocamento dentário, entretanto o profissional deve respeitar essa fase como parâmetro dos intervalos de ativações.

O início da hialinização frequentemente tem como correspondente clínico o início da sintomatologia dolorosa, caracterizado pela inflamação aguda no ligamento periodontal. Essa informação sugere que, nos relatos de sensibilidade dolorosa, em alguma região do ligamento periodontal, provavelmente, pode estar se iniciando um novo quadro de hialinização. Normalmente os pacientes relatam maior sensibilidade durante as primeiras ativações. Posteriormente, os relatos de dor são menores, provavelmente pelo aumento da espessura do ligamento periodontal e pela melhora do posicionamento dentário, sendo os deslocamentos menores e, consequentemente, com redução da força. Salienta-se, portanto, que os traumas provocados pelas interferências dentárias são fatores que desenvolvem estresse e podem desencadear mecanismos biológicos que proporcionam injúrias no ligamento periodontal, dor e o surgimento de tecido hialinizado. Em alguns estudos, foram observados tecidos necróticos não só na fase de repouso inicial, mas também durante as fases posteriores, denominadas de aceleração linear do movimento dentário12,13,14.

Portanto, diante da complexidade existente na relação entre a quantidade de movimentação e a magnitude da força, as evidências clínicas — como a mobilidade dentária, o relato da fase de sensibilidade dolorosa, intervalos de ativações, permanência do estresse gerado pelos diversos tipos de ligas, distribuição do estresse nas superfícies óssea e radicular —, bem como o controle radiográfico, são fatores relevantes que devem ser considerados durante a movimentação dentária para se manter a saúde do periodonto e da superfície radicular.

Tipos de forças e suas repercussões biológicas e clínicas

O mecanismo biológico decorrente da movimentação ortodôntica apresenta grande influência de acordo com as características da força aplicada, gerando reações teciduais variadas15.

Segundo Graber e Vanarsdall16, existem dois diferentes tipos de forças empregadas em Ortodontia: as forças contínuas e as intermitentes. A força contínua libera o mesmo nível de estresse durante um longo período. Esse tipo de força é, frequentemente, produzido por fios e molas com características superelásticas, com alta flexibilidade e memória de forma. Por outro lado, uma força intermitente atua durante um período reduzido, sendo eliminada totalmente com a remoção do dispositivo gerador da força. Normalmente, são observadas com a utilização de aparelhos extrabucais, removíveis e elásticos intermaxilares16.

No grupo de forças contínuas, alguns dispositivos têm a capacidade de reduzir gradativamente o estresse e atingir um nível de interrupção da movimentação dentária sem a remoção do dispositivo, sendo classificadas como forças contínuas interrompidas. Esse quadro se estabelece quando são utilizados fios ou molas com reduzida flexibilidade e memória de forma. Os alastics em forma de corrente perdem sua elasticidade em decorrência da degradação da força com a exposição ao meio bucal, a qual também pode ser considerada uma força contínua interrompida.

Na fase inicial da movimentação, o dente se desloca no espaço do ligamento periodontal e provoca a deflexão óssea, que desloca o dente de 0,2 a 0,3mm, podendo chegar a 0,9mm. A capacidade de deflexão óssea está diretamente relacionada à morfologia das cristas ósseas alveolares. Durante a aplicação das forças ortodônticas, as cristas ósseas com formato triangular tendem a sofrer maior deflexão, quando comparadas às com forma retangular ou romboidal. Consequentemente, por absorverem parte dessa força, tendem a distribuí-la com menores riscos de lesão à camada cementoblástica e de reabsorção radicular9,17.

Em 1996, Cuoghi e Consolaro18 estudaram os primeiros momentos da movimentação dentária induzida em macacos-prego. Nessa pesquisa foram utilizadas forças contínuas e intermitentes durante 25 horas, em intervalos de 5 horas. Os dentes atingiram uma movimentação máxima de aproximadamente 0,8mm após 10h de força contínua. Após esse período, ou seja, com 15h e 20h, houve um tendência à estagnação da movimentação, mesmo empregando-se forças contínuas. Com forças intermitentes ocorreram recidivas significativas durante os períodos de repouso de 5h e 10h, ou seja, nesses períodos foram observadas movimentações, respectivamente, de 0,31mm e 0,02mm. Um fator interessante observado pelos pesquisadores foi que dentes que ficaram sem o emprego da força durante 5h, e voltaram a ser ativados durante 10h de força contínua, não atingiram a mesma quantidade de deslocamento dos dentes movimentados inicialmente por 10h. A redução da quantidade de movimentação pode ser explicada pela resistência imposta pela recidiva da flexibilidade óssea ocorrida durante a movimentação dentária inicial (Fig. 1).

Por outro lado Andrews19, em 1975, relatou a necessidade de um estresse contínuo por 10h no ligamento periodontal para estimular e organizar quimicamente o processo de reabsorção e a atividade clástica. Entretanto, Cuoghi e Consolaro18, em 1996, evidenciaram poucas áreas de hialinização e nenhum processo de reabsorção e neoformação óssea. Mesmo com a ausência de evidências de reabsorção e neoformação óssea nos períodos estudados, não se deve descartar o início da organização química e de estímulos elétricos vinculados às distorções dos tecidos, referente à teoria da piezoeletricidade. Ambas as pesquisas salientaram que a duração da força ou do estresse é mais importantes do que sua magnitude.

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A análise quantitativa da movimentação dentária estudada por Cuoghi, Tondelli e Mendonça20, em 2011, demonstrou que, no período de 5 dias, os dentes de ratos movimentados com força contínua apresentaram maiores deslocamentos. Por outro lado, nos períodos de 7 e 9 dias, sob o emprego de força contínua interrompida, atingiram maiores níveis de deslocamento (Fig. 2).

A duração do tratamento, a magnitude da força aplicada, a direção do movimento dentário e o método de aplicação de forças parecem contribuir para que as forças contínuas interrompidas e intermitentes sejam menos agressivas do que as contínuas21.

Algumas pesquisas relatam que forças de baixa magnitude e de forma contínua resultam em respostas biológicas desejáveis. Os fios superelásticos, com alto limite elástico e memória de forma, como a liga de níquel-titânio (NiTi), têm sido usados amplamente para os tratamentos ortodônticos, objetivando desempenhar forças contínuas e com baixa magnitude. Apresentam como principais características a superelasticidade, resistência à corrosão e excelente biocompatibilidade, podendo ser utilizados por períodos maiores, apresentando respostas biológicas desejáveis22,23.

A investigação de forças contínuas e intermitentes com diferentes intensidades durante a movimentação dentária demonstrou que a duração de uma força tem mais influência do que sua magnitude24.

Em 2003, Weiland25 constatou que os fios superelásticos podem provocar reabsorções radiculares 140% maiores quando comparados a fios de aço inoxidável. Convém salientar que fios superelásticos desempenham forças durante períodos prolongados, ou seja, de forma contínua, enquanto os fios de aço inoxidável desempenham forças contínuas durante um curto período e que, depois, são interrompidas. Os resultados dessa pesquisa25 demonstraram que a força contínua interrompida proporciona deslocamentos dentários semelhantes àqueles obtidos com força contínua, porém com efeitos biológicos mais satisfatórios.

Cuoghi, Tondelli e Mendonça20 pesquisaram, ainda, por meio de avaliação histomorfométrica, as reações da movimentação dentária induzida em ratos sob as condições de força contínua (FC), força contínua interrompida (FCI) e força intermitente (FI). Observaram que o emprego de forças contínuas produz mais áreas hialinas e apresenta maior frequência de reabsorções radiculares (Fig. 3). Por outro lado, as forças contínuas interrompidas foram as que produziram menos áreas hialinas (Fig. 4). Além disso, ficou demonstrado que as forças intermitentes produzem áreas hialinas de forma semelhante às interrompidas, porém permitem recidivas da movimentação dentária (Fig. 5).

Frequentemente observa-se a realização de tratamentos ortodônticos com dispositivos que desempenham forças contínuas, sem interrupção durante todo o período. Ainda que essas forças possam ser consideradas de baixa magnitude, os efeitos deletérios certamente ocorrem com maior frequência, por não existir uniformidade anatômica das paredes alveolares, das raízes dentárias e do ligamento periodontal, além do estresse ou da tensão permanecer por um longo período no ligamento periodontal. Deve-se enfatizar que as forças mecanicamente empregadas na Ortodontia não são usadas para produzir um movimento mecânico, e sim para produzir estímulos biológicos que desencadeiam a movimentação dentária, que é um fenômeno biológico, e não um evento físico9,20,27.

Também em 2011, Cuoghi, Aiello, Mendonça e Consolaro28, investigaram a influência de forças contínuas, contínuas interrompidas e intermitentes sobre raízes de ratos com diferentes dimensões. Os autores concluíram que os diferentes tipos de forças não excluem a possibilidade de reabsorção radicular. Entretanto, as forças contínuas proporcionaram maiores tendências de reabsorções radiculares, com ênfase para as raízes de menores dimensões. As forças intermitentes apresentaram menores potenciais de reabsorções, porém, com evidências de menores quantidades de deslocamentos dentários. Dessa forma, as forças contínuas interrompidas demonstraram ser mais satisfatórias, tanto no aspecto de deslocamento quanto nas reações biológicas, medidas pela reabsorção radicular (Fig. 6).

Diante dessas reflexões, pode-se inferir que iatrogenias, como áreas extensas de reabsorção radicular e perda de altura de osso alveolar, podem ser evitadas com a aplicação de condutas clínicas respaldadas por conhecimento científico baseado em evidências.

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