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Livro da Editora Fiocruz discute a caixa-preta da odontologia

Os belos sorrisos que estampam as propagandas não deixam entrever o quão complexas podem ser as relações da odontologia com a sociedade contemporânea. A ciência e a clínica odontológica têm entre si e com a sociedade capitalista consumista relações biopolíticas, marcadas por disputas epistêmicas e de poder. Nesse contexto, novos produtos e procedimentos médico-odontológicos são crescentemente oferecidos como mercadorias e desejados por razões de ordem estética e cosmética. Enquanto isso, fica cada vez mais de lado a discussão sobre as necessidades de saúde pública e as iniquidades de acesso aos bens e serviços odontológicos, acentuando-se um comprometimento ético-político neoliberal da prática odontológica. Para compreender a odontologia e seus dispositivos na sociedade atual – ou da modernidade tardia –, os pesquisadores Adauto Emmerich, da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), e Luis David Castiel, da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), optaram por uma abordagem no campo multidisciplinar dos social studies of science. O resultado de suas análises pode ser conferido no livro O lagarto e a rosa no asfalto: odontologia dos desejos e das vaidades, lançamento da Editora Fiocruz.

 

Dividido em quatro capítulos, o livro coloca o desafio de reconciliar, em uma perspectiva analítica, as intenções teóricas e a prática da odontologia, seus interesses políticos e suas bases científicas. “Em nome da ‘ciência odontológica’, da objetividade científica e da prática clínica odontológica, somos permanentemente bombardeados por novos procedimentos clínicos ditos modernos e por definições e redefinições de novas práticas e ‘avanços científicos’, muitas vezes discutíveis, que protagonizam a história humana da odontologia”, observam os autores. O desafio, portanto, é fazer com que essa ciência – imersa em um contexto mercadológico – não perca de vista seu compromisso com o bem comum e a totalidade humana, o que remete às concepções de integralidade e universalidade do Sistema Único de Saúde (SUS).

Nesse sentido, é preciso reconhecer que, apesar de todos os avanços científicos e técnicos, as condições de saúde bucal da população brasileira são ainda muito ruins. Só que, paralelamente, a procura por tratamento com implantes odontológicos tem aumentado exponencialmente no Brasil: já são 800 mil implantes e 2,4 milhões de componentes de próteses dentárias por ano. Chama a atenção também que este amplo mercado consumidor tem sido atendido, sobretudo, pela própria industria nacional.

“A área da saúde bucal e o complexo médico-odontológico-industrial, que congrega os setores de atividade que dela fazem parte, aliam alto dinamismo industrial, elevado grau de inovação e interesse social voltado para a concepção de políticas industriais e tecnológicas articuladas com os interesses capitalistas e consumistas”, afirmam os autores. Entretanto, esses espaços de acumulação e inovação não devem ser necessariamente incompatíveis com interesses sociais legítimos não subordinados à lógica do mercado. Daí a necessidade, segundo os pesquisadores, de “um padrão de estímulos e sanções que permita a orientação dos setores empresariais da saúde para os objetivos de natureza social e para o atendimento das necessidades nacionais e da população”.

O livro também analisa o contexto social da formação dos cirurgiões-dentistas, pois no processo de ensino-aprendizagem se transmitem não apenas competências técnicas, mas também compromissos normativos. Os autores criticam uma formação descontextualizada, sem um cuidado integral e universal. Comentam, por exemplo, que muitos profissionais optam pela prática em clínicas e consultórios privados, em especial aqueles relacionados à implantodontia e à odontologia estética, considerada mais lucrativa do que o trabalho nos serviços públicos. E, no âmbito dos serviços privados, há importantes questões ideológicas e éticas: “os cirurgiões-dentistas não têm conhecimento adequado sobre os riscos e benefícios dos biomateriais, nem de seus princípios biológicos, adquirindo-os, principalmente, de vendedores autônomos”, e “o culto da beleza e da estética invadiu a prática odontológica”.

Ilustram bem essa problemática os gigantescos congressos de odontologia, onde é extensa a exposição comercial patrocinada, com marketing agressivo, que surpreende e envolve os cirurgiões-dentistas que participam daqueles eventos. Contudo, os profissionais não são os únicos protagonistas desse processo. “O que pretendemos é também destacar, nesse caso, o papel dos consumidores-pacientes, aos quais se acrescentam os usuários do SUS, ansiosos por uma aparência estética renovada”, explicam Emmerich e Castiel.

Um dos capítulos do livro é dedicado à halitose – o popular mau hálito – e aos mecanismos por meio dos quais um fenômeno registrado desde os tempos bíblicos foi enquadrado em uma disciplina acadêmica, tornando-se uma patologia odontológica dentro de um arcabouço científico. “Entendemos que essa disciplinarização da halitose é produto do processo civilizador, da produção e do consumismo no e do mundo capitalista, das relações sociais, das transformações culturais, propriamente sujeitos a mudanças, e não uma fixação de algo imutável na complexa e processual história humana”, comentam.

Que caminhos trilhar em um mundo alienado e cínico diante das forças transformadoras do mercado consumista capitalista que se sobrepujam ao sistema social? Qual é a lógica que se apresenta no campo da saúde bucal coletiva, da programação da atenção à saúde ou do cuidado e do planejamento das ações de saúde? Estas são questões que o livro coloca em debate. Embora não tenham a pretensão de oferecer respostas conclusivas, os autores procuram “abrir a caixa-preta da ciência odontológica para melhor visualizá-la, a partir da compreensão do funcionamento e da dinâmica interna do coletivo odontológico, para impulsionar a reflexão, no sentido de ampliar a visão da própria ciência odontológica em sua prática”.

Fonte: Fiocruz

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