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Influência da abertura coronária na localização dos canais radiculares em incisivos inferiores

Resumo

 

Objetivo: avaliar a influência das formas de aberturas coronárias na localização dos canais radiculares em incisivos inferiores. Métodos: foram utilizados 32 dentes extraídos de humanos, sendo 16 com canal único e 16 com dois canais radiculares que receberam, inicialmente, aberturas coronárias ovais conservadoras, seguidas de montagem aleatória em manequim, para avaliação clínica do número de canais radiculares por dois especialistas. Após essa etapa, os acessos foram ampliados para forma triangular não conservadora, sendo submetidos a uma segunda avaliação clínica quanto ao número de canais radiculares. Resultados: nos exames das aberturas conservadoras, os examinadores 1 e 2 obtiveram, respectivamente, 15 (94%) e 14 (87%) acertos para os dentes com um canal, com nenhum (0%) e 5 acertos (31,2%) para os dentes com 2 canais. Após ampliar as aberturas, os examinadores 1 e 2 obtiveram, respectivamente, 16 acertos (100%) nos casos com 1 canal, com 5 (31,2%) e 10 (62%) acertos nos casos com 2 canais. Entre os examinadores, na abertura não conservadora obteve-se Kappa = 0,456 e, na conservadora, Kappa=0,629, determinando concordância moderada. Conclusão: conforme os resultados, as aberturas coronárias triangulares não conservadoras levam a um percentual maior de acertos na localização dos canais de incisivos inferiores do que as aberturas conservadoras ovais, sendo essa diferença estatisticamente significativa (p<0,05).

 

Palavras-chave: Preparo de canal radicular. Endodontia. Cavidade pulpar.

 

 

Introdução

O acesso clínico ao sistema de canais radiculares, obtido por meio de uma abertura idealmente planejada e realizada na coroa do dente, objetiva não apenas aceder à câmara pulpar, mas prepará-la de forma adequada para localizar e explorar os canais radiculares que serão submetidos aos procedimentos de limpeza, modelagem e obturação do sistema de canais, contribuindo, assim, para o êxito do tratamento.

Na abertura de incisivos inferiores, um único canal radicular com maior dimensão vestibulolingual é localizado na maioria das vezes, no entanto, tais dentes podem apresentar dois canais radiculares (vestibular e lingual) numa incidência que varia de 11,5 a 45,0%, conforme estudos realizados por Madeira e Hetem1, Benjamin e Dowson2, Kartal e Yanikoglu3 e Oliveira et al.4

Para Buchanan5, a cavidade de acesso tradicional, ou clássica, que envolve toda a circunferência da câmara pulpar em um formato triangular ou oval, resulta em um acesso 50% maior que o necessário, o que significa um desperdício bruto de estrutura dentária saudável. Assim, recomenda que durante o acesso de dentes anteroinferiores a forma de contorno seja oval, com desgaste conservador no sentido mesiodistal de 1,5mm. Contudo, Nielsen e Shahmohammadi6 comentaram que a forma adequada de acesso depende mais da anatomia em si e, no caso dos incisivos inferiores, considerável atenção deve ser dada no preparo da cavidade de acesso a fim de localizar dois canais. Por isso, ampliar mesiodistalmente além de 1mm é justificável, se for necessário obter adequada visualização e instrumentação do canal.

Segundo Peters7, os erros de abertura geralmente originam-se de aberturas estendidas aquém ou além do necessário. Aberturas diminutas podem levar o profissional a não encontrar os canais, ou caso seja encontrado e não tenha sido feito um acesso em linha reta, aumentam as chances de fratura da lima ou de transporte do canal. Cavidades muito extensas geralmente causam remoção desnecessária de estrutura dentária e enfraquecem o remanescente coronário, podendo ocasionar, em longo prazo, comprometimento irreparável do elemento dentário.

Diante do exposto, o presente trabalho tem por objetivo comparar se aberturas coronárias conservadoras com formato oval e aberturas coronárias não conservadoras com formato triangular, influenciam na localização dos canais radiculares de incisivos inferiores.

 

Material e Métodos

Foram utilizados incisivos inferiores permanentes de humanos, cedidos pelo Banco de Dentes da Faculdade de Odontologia da Universidade Federal de Alagoas (FOUFAL), não tendo sido anotada a razão da exodontia, o antímero, idade, sexo e raça do paciente. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) sob protocolo n° 000470/2011-85.

Participaram da pesquisa apenas incisivos inferiores com coroas hígidas ou com pequenas restaurações localizadas nas faces proximais sem envolvimento da câmara pulpar, portadores de raízes hígidas, isentos de calcificações na cavidade pulpar, contendo um ou dois canais radiculares com bifurcação no terço cervical. Para confirmar a ausência de calcificações, bem como o número de canais, realizaram-se radiografias digitais de mesial para distal e de vestibular para lingual utilizando um aparelho de raios X (Intra-oral Focus, Kavo®), de 60 kVp e 10 mA, regulado para 0,3 de segundos de exposição (Fig. 1).

Um total de 32 incisivos inferiores, sendo 16 dentes com canal único e 16 dentes com 2 canais radiculares (vestibular e lingual) foram utilizados. Para avaliar se a forma de abertura influenciava na localização dos canais radiculares, todas as amostras tiveram seus acessos feitos de forma conservadora (grupo conservador oval), seguidos de avaliação clínica por dois examinadores especialistas em Endodontia. Finda essa etapa, os mesmos dentes receberam um desgaste adicional em suas aberturas, dando origem ao segundo grupo (grupo não conservador triangular), para posterior avaliação clínica em relação ao número de canais radiculares.

 

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Na abertura coronária oval conservadora utilizou-se uma ponta diamantada esférica de alta rotação número 1011 (KG Sorensen) para trabalhar em esmalte no centro da face lingual, objetivando obter uma forma ovalada com maior diâmetro cervicoincisal, a qual se estendia das proximidades da borda incisal à área um pouco acima (coronária) do cíngulo. Após dar a forma oval inicial, perfurou-se a câmara pulpar com a ponta esférica e, com uma ponta diamantada cônica de extremidade inativa número 3082 (KG Sorensen), em alta rotação, removeu-se o teto da câmara e interferência vestibular, inclinando-se ligeiramente a ponta diamantada para a borda incisal da abertura. Em seguida realizou-se o desgaste da dentina lingual localizada sob o cíngulo. A largura mesiodistal da abertura conservadora ficou entre 1,0 e 1,25mm (Fig. 2).

Na abertura coronária triangular não conservadora a forma de contorno oval foi ampliada com a mesma ponta diamantada 3082 (KG Sorensen®), deixando as paredes proximais do acesso ligeiramente divergentes para incisal. Na borda incisal da abertura realizou-se um bisel objetivando englobar a borda incisal do dente e, cervicalmente, a abertura foi estendida à área do cíngulo, recebendo um desgaste adicional da dentina situada na parede lingual da abertura. A extensão mesiodistal da abertura ficou entre 1,5 e 2mm (Fig. 3).

Para exame do número de canais radiculares, os incisivos com um e dois canais, previamente identificados, foram posicionados de forma aleatória no segmento anteroinferior de um manequim para periodontia (Prodens) e avaliados em ambos os momentos por dois especialistas em Endodontia com diferentes períodos de experiência (o examinador 1 com 7 anos de experiência e o examinador 2 com 25 anos de experiência).

Com os manequins devidamente posicionados na cadeira odontológica e sob a iluminação de um refletor (Persus Simples, Gnatus), cada observador recebeu uma ficha de identificação dos elementos dentários, espelho bucal plano, uma sonda exploradora endodôntica e limas tipo K número 10 de 21mm (Dentsply Maillefer) para explorar e identificar o número de canais radiculares.

Para análise de concordância inter e intraexaminadores foi utilizado o índice Kappa e para comparação dos resultados obtidos com os diferentes tipos de aberturas foi utilizado o teste de McNemar (p=0,05).

 

Resultados

Na Tabela 1, observam-se que nas aberturas conservadoras os examinadores 1 e 2 obtiveram, respectivamente, 94% e 97% de acertos na identificação dos casos com canal único, obtendo 0 e 31% de acertos dos casos com dois canais. Ademais, dos 16 casos que continham canal único, os examinadores 1 e 2 classificaram equivocadamente um e dois dentes portadores de 2 canais radiculares, respectivamente. Após examinar as aberturas ampliadas (não conservadoras triangulares), os examinadores 1 e 2, respectivamente, obtiveram acertos de 5 (31,2%) e 10 (62%) dos 16 casos com 2 canais, com 100% de acerto para os casos com canal único.

A Tabela 2 demonstra que o examinador 1 obteve 15 acertos e 11 erros na localização dos canais dos mesmos dentes nas duas formas de abertura (oval e triangular). No entanto, com os seis erros ocorridos no exame de dentes com aberturas conservadoras, ocorreram acertos quando eles foram examinados após ampliar-se a cavidade. Para comparar os resultados obtidos pelo examinador 1, foi utilizado o teste de McNemar, obtendo-se um valor de p=0,031, o que indica a existência de diferença significativa entre as técnicas (p<0,05), tendo a abertura coronária não conservadora obtido um percentual de acertos maior do que a abertura conservadora. O coeficiente de concordância entre as técnicas de abertura para localizar canais radiculares para o examinador 1 foi Kappa = 0,632, indicando que existiu concordância moderada entre as duas técnicas de abertura coronária na localização de canais radiculares.

 

 

 

 

 

 

 

A Tabela 3 demonstra que para o examinador 2 houve 18 acertos e 5 erros tanto na forma conservadora oval como na forma não conservadora triangular, sendo observado que em 8 casos de erros da abertura conservadora ocorreram acertos quando a cavidade foi ampliada. Para comparar os resultados, foi utilizado o teste de McNemar, com valor de p=0,039, o que indica a existência de diferença significativa entre as técnicas (p<0,05), tendo a abertura coronária triangular não conservadora obtido um percentual de acertos de 81,3%, contra 59,4% da abertura conservadora oval. O coeficiente de concordância entre as técnicas foi Kappa=0,363, indicando que para o examinador 2 existiu uma concordância fraca entre as duas técnicas de abertura coronária na localização de canais radiculares.

O coeficiente de concordância entre os examinadores 1 e 2 para a abertura triangular não conservadora foi Kappa = 0,456 e, para a abertura oval conservadora, foi Kappa = 0,629, assim determinando que os examinadores 1 e 2 apresentaram concordância moderada. A maior concordância dos resultados entre os examinadores na determinação do número de canais ocorreu na forma de abertura oval conservadora pelo fato do número de erros ter sido maior para os dois examinadores nessa etapa. No entanto, tanto para o examinador 1 como para o examinador 2, a abertura triangular não conservadora foi mais eficiente do que a conservadora para detecção do número de canais.

 

Discussão

Para os incisivos inferiores com dois canais, Warren e Laws8 e Clements e Gilboe9 recomendam que a abertura coronária seja realizada por vestibular ou, conforme LaTurno e Zillich10, Mauger et al.11 e Johnson12, que a cavidade seja estendida mais para vestibular, uma vez que a abertura por lingual dificultará a localização e exploração do segundo canal pela presença da protuberância proeminente da dentina na área do cíngulo. Sobre a extensão da cavidade de acesso para vestibular, Mauger et al.11 concluíram que nos dentes com maior desgaste da borda incisal, o local ideal para obter-se acesso em linha reta muda de vestibular para a borda incisal. Nesse trabalho os melhores resultados obtidos nas aberturas com forma triangular podem ter sofrido influência do envolvimento da borda incisal dos dentes na cavidade de acesso, conforme citam os autores que defendem essa forma de abordagem.

Em contrapartida, Janik13 defende ser imperativo estender a cavidade de acesso em direção à área do cíngulo para localizar e desbridar adequadamente o canal lingual, caso evidências radiográficas sugiram a possibilidade de dois canais nos incisivos inferiores. Concordando com essa forma de abordagem, estão autores como Ingle et al.14, Vertucci et al.15, Buchanan5 e Peters7. Procedimentos similares foram adotados nesse estudo, onde aberturas não conservadoras tiveram a cavidade ampliada à área do cíngulo, com maior desgaste da parede dentinária lingual, o que pode ter auxiliado no maior número de acertos obtidos pelos examinadores em relação à localização e determinação dos canais de incisivos inferiores.

Em relação à forma e tamanho da cavidade de acesso Stock16, Ingle et al.14 e Vertucci et al.15 afirmaram que o contorno externo das aberturas coronárias em incisivos inferiores pode ser triangular ou oval, dependendo da proeminência dos cornos pulpares mesial e distal. Ruddle17 recomenda que o tamanho da cavidade de acesso seja determinado pela posição do(s) orifício(s) de entrada do(s) canal(is) e, em relação às paredes axiais, recomenda que sejam estendidas lateralmente de forma que o(s) orifício(s) esteja(m) em continuidade com elas. A esse aspecto, Janik13 relata que em um acesso excessivamente pequeno, a lima inserida no dente geralmente passará no canal vestibular de forma livre, não localizando o canal lingual. Tal fato foi observado no presente trabalho onde a dificuldade em localizar dois canais foi maior nas aberturas conservadoras ovais, quando comparado com as aberturas não conservadoras, para os dois examinadores.

Corcoran et al.18 demonstraram em um estudo que a experiência profissional influencia na localização de canais adicionais. No presente estudo, ao examinar-se os elementos dentários com aberturas coronárias ovais conservadoras, nenhum caso que continha dois canais foi identificado pelo examinador 1 (menos experiente). No entanto, no mesmo grupo conservador, o examinador 2 (mais experiente) acertou 5 (31,2%) dos 16 casos que apresentavam 2 canais radiculares. Quando os mesmos 16 dentes foram examinados no segundo momento, ou seja, após ampliar a abertura conservadora, o examinador 1 aumentou os acertos, localizando em 5 (31,2%) dos 16 casos os 2 canais, e o examinador 2 acertou 10 (62%) dos 16 casos que apresentavam 2 canais radiculares. Na abertura conservadora, 6,2% (1 dente) e 13% (2 dentes) dos 16 dentes que continham canal único, foram classificados equivocadamente como portadores de 2 canais pelos examinadores 1 e 2, respectivamente, não sendo observados casos de erro na identificação dos casos com um canal após obter-se a forma de abertura triangular não conservadora, tanto para o examinador 1 quanto para o 2.

Esse trabalho demonstra a necessidade do procedimento de acesso nos dentes anteriores inferiores com dois canais apresentarem uma maior amplitude nos sentidos mesiodistal e cervicoincisal para facilitar a localização do canal lingual. O não envolvimento da borda incisal, assim como da área do cíngulo do dente na extensão cervicoincisal da abertura oval conservadora, dificultou, em muito, a localização do segundo canal e, segundo Janik13, em muitos momentos a conservação do cíngulo pode levar ao fracasso em localizar o canal lingual, assim como o acesso tradicional por lingual pode deixar um segundo canal sem ser tratado, conforme citam Warren e Laws8 e Clements e Gilboe9, que defendem o envolvimento da face vestibular ou da borda incisal na abertura de incisivos inferiores. A diminuta extensão da abertura oval no sentido mesiodistal (1,0 a 1,25mm), defendida por autores como Buchanan5, pode ter prejudicado a iluminação e inspeção indireta no exame clínico dos dentes que continham dois canais, pelo fato das suas paredes não serem expulsivas como nas aberturas triangulares não conservadoras, que permitem melhor passagem da luz refletida pelo espelho para a parte interna da cavidade. Ainda, segundo Nielsen e Shahmohammadi6, ampliar mesiodistalmente além de 1mm é justificável se for necessário obter adequada visualização e instrumentação do canal.

 

Conclusão

Com base nesse estudo, pode-se concluir que a forma de abertura coronária triangular não conservadora favorece significativamente a localização e determinação dos canais radiculares de incisivos inferiores quando comparada com a forma de abertura oval conservadora. No entanto, como em nenhuma das formas de abertura houve 100% de acerto na localização da presença de dois canais, pesquisas adicionais são necessárias para observar se aberturas coronárias com abordagem vestibular influenciam na localização do segundo canal de incisivos inferiores.

 

Como citar este artigo:

Vasconcellos RCC, Barbosa VF, Inojosa IFAJ, Machado JL, Santos RA, Menezes RF, Soares MMLT. Influence of coronal opening in the location of root canals in mandibular incisors. Dental Press Endod. 2012 July-Sept;2(3):74-9.

» Os autores declaram não ter interesses associativos, comerciais, de propriedade ou financeiros, que representem conflito de interesse nos produtos e companhias descritos nesse artigo.

 

Renata Carvalho Cabral de Vasconcellos

Endereço para correspondência:

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