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Guerra ao ronco é tema de coluna na Folha de S. Paulo

 

ronco_fases_01A utilização de aparelhos intraorais para o tratamento do ronco e apneia do sono é uma prática comum entre os dentistas – há cursos de especialização que preparam os profissionais a realizar tal técnica. Mas a possibilidade de tratar um problema tão sério apenas com um aparelho, sem a necessidade de cirurgia, ainda soa como novidade para o público em geral.

O colunista da Folha de S. Paulo Marcelo Coelho, membro do Conselho Editorial do jornal e autor de romances e de coletâneas de ensaios, abordou o assunto em sua coluna desta quarta-feira (25). Abaixo, veja a coluna na íntegra – vale ler o depoimento do ponto de vista de um paciente.

“Nunca usei aparelho nos dentes. Hoje é comuníssimo, uma verdadeira epidemia. Na minha época predominava a prática de extirpar as amídalas —mas tampouco fizeram isso comigo.

Começo a pensar que tive uma infância bastante abandonada. Que seja; isso se recupera. Pelo menos no caso dos aparelhos ortodônticos.

Sim. Experimento a coisa, todas as noites, não por algum encavalamento de caninos e incisivos, que tentasse corrigir já próximo da idade das papas e mingaus.

O caso é de ronco. Submeto-me a uma nova técnica, que visa a um melhor posicionamento da mandíbula.

Projetando-a rumo ao teto (coisa pouca, calculada em frações de milímetro) poderei —pelo que entendi— liberar as vias respiratórias, evitando a estentórea vibração noturna do palato mole.

Excelente notícia. Tinha experimentado antes um dispositivo deprimente e intolerável, que fazia do meu quarto uma espécie de sucursal da UTI.

A máquina insuflava à força o ar em meus pulmões inermes —correspondendo, quem sabe, ao inverso das torturas de Guantánamo, onde se afogavam prisioneiros para que contassem seus segredos.

Aqui, enchiam-me de ar para que eu ficasse quieto. Era preciso amarrar um bocal de plástico no meu rosto, na expectativa de que assim eu tivesse “uma boa noite de sono”.

Algumas pessoas se sentem felizes com o invento. A máquina lhes prolonga a vida; serve talvez como garantia, ligada na tomada, de que estão sendo bem cuidados. Eis o anjo da guarda, o seio materno, a asa ritmada do Espírito Santo, a ressurreição de 30 em 30 segundos.

“Mudou a minha vida”, diz uma testemunha. Sem dúvida, parou de roncar, e isso não traz apenas o conforto aos circunstantes. Como se sabe, o ronco está associado à apneia, e esta leva à interrupção do sono, coisa que se mede às centenas durante uma única noite.

O roncador acorda sem ter dormido direito e se arrasta aos bocejos pelo dia. Sofre de falhas de memória. Ao longo da noite, sua pressão arterial conheceu picos alarmantes.

Arrisca-se a despertar já semiparalisado por um derrame: vai desligar o despertador e o braço não se mexe. Ou quem sabe morre de uma vez, o que —considerando os outros caminhos pelos quais se extingue a vida humana— pode não ser tão mau assim.

Se ele sobrevive ao ronco, o mesmo nem sempre se dirá de sua vida conjugal. Cansada do trabalho, da academia, dos afazeres domésticos, a mulher se volta, na cama, para o marido roncador.

Nunca lhe pareceu tão idiota, tão ridículo, tão supérfluo. Por definição, o roncador é aquele que “não sabe de nada”. É uma montanha, um maciço de carne. O monstruoso cântico que ele entoa é feliz. Mergulhou numa inocência de suíno.

“Como pode?”, pergunta a mulher desesperada. Como alguém pode ser homem? Que tipo de animal primitivo, entusiasta de churrascos, motocicletas e lutas de boxe é esse com quem vivo?

Se ronca, a culpa é dele. Se ronca, não gosta de mim. A hostilidade que tem por mim, disfarçada ao longo do dia em desatenção e indiferença, revela-se na escuridão do quarto, do mesmo modo que os sonhos indicam os desejos do inconsciente.

A psicanálise do ronco ainda está por ser tentada. A cônjuge tem seus próprios conflitos. Insatisfeita, sem dúvida, quanto ao desempenho sexual do marido, não se conforma com tanta proclamação, e tão ruidosa, do primário contentamento masculino.

Ela, que no seu ventre conheceu apenas os pequenos chutes e circunvoluções do filho por nascer, não aceita que dentro da barriga do marido se esconda um herdeiro de Belial, Baal ou Belzebu. Grávido de um javali, provedor de crocodilos, pai do próprio hipopótamo, o marido dorme.

Não ouve –circunstância curiosa– o ronco que produz. Celebra, numa tuba agônica, o triunfo estúpido de ser macho.

Não. Volto à infância, à esguia adolescência. Adapto o aparelho dentário ao palato superior. Um gancho prende a este a parte de baixo. Ferrinhos firmam tudo nos meus dentes.

Que encaixe perfeito! Sinto um pouco de pressão sobre o esmalte. Não sei se por alguma sugestão psicológica, durmo logo depois. O escuro do quarto me obtura e oblitera. Não sei se vou roncar; percebo que estou babando mais no travesseiro.

Talvez seja o destino de todo articulista: no começo, eu escrevia textos ásperos, roucos, furiosos. A raiva e a bile vão, com o tempo, se diluindo em baba. Boa noite.

É membro do Conselho Editorial da Folha. É autor de romances e de coletâneas de ensaios. Comenta assuntos variados. Escreve às quartas.

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