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Endocrown passo a passo: do laboratório à clínica

INTRODUÇÃO

Elementos tratados endodonticamente possuem redução de integridade estrutural por causa do procedimento de instrumentação e remoção da polpa dentária1. Dessa forma, ao tratarmos de reabilitações individuais de elementos severamente danificados em sua parte coronária, lançamos mão de restaurações cerâmicas com retentores intrarradiculares2.

A utilização dos pinos radiculares vem sendo preconizada há muitos anos com grande êxito e aparente consolidação na utilização clínica. No entanto, estudos sobre pinos demonstram grandes variáveis em sua taxa de sobrevivência, revelando a presença de riscos de fraturas radiculares durante o processo de preparo intrarradicular e por forças mastigatórias e aleatórias3.

Uma alternativa para reconstrução do elemento dentário tratado endodonticamente é a endocrown (coroa endodôntica adesiva), que compreende totalmente a coroa dentária visando a ancoragem e adesivagem na cavidade central da câmara pulpar, eliminando a necessidade da utilização de pinos radiculares1,4. Tal procedimento revelou baixos valores de fraturas radiculares quando comparado aos tratamentos convencionais5.

A confiabilidade de realização dos compósitos cerâmicos se dá ao advento dos sistemas adesivos, em associação às cerâmicas sinterizadas em potentes fornos passíveis de condicionamento ácido6.

Dessa forma, o presente trabalho descreve o procedimento clínico e laboratorial passo a passo por meio de um caso clínico.

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CASO CLÍNICO

Paciente do sexo masculino, 29 anos de idade, compareceu ao consultório odontológico com restauração em amálgama infiltrada com reparos em resina composta insatisfatória e presença de trincas no esmalte vestibular. Após avaliação radiográfica, constatou-se a presença de canais radiculares devidamente obturados (Fig. 1).

No planejamento clínico desse elemento, foi indicada a remoção de todos os materiais restauradores existentes e da parte vestibular escurecida e com microtrincas ocasionadas pelo metal, para a confecção de coroa cerâmica endocrown.

Após remoção dos materiais restauradores, foi realizada a inserção do fio retrator #000 Ultrapack (Ultradent, South Jordan, EUA) com líquido hemostático Hemostop (Dentsply, Mannheim, Alemanha) para o controle da exsudação do sulco dentário. Os preparos dentários (Fig. 2) foram confeccionados com brocas 4138 e 2215 (KG Sorensen, Cotia/SP) e polidos com borrachas de polimento Enhance (Dentsply).

Após visualização e aprovação do preparo, foi inserido o segundo fio retrator #0 Ultrapack (Ultradent), embebido na solução hemostática nas margens superficiais do sulco, mantido durante cinco minutos, lavado e seco pela utilização da seringa tríplice. O segundo fio foi lentamente removido (Fig. 3), seguido da inserção do material fluído de silicone de adição ao sulco dentário para consequente moldagem em um único passo do material pesado de silicone de adição virtual (Ivoclar Vivadent, Schaan, Liechtenstein).

A moldagem em negativo foi cuidadosamente inspecionada e enviada ao laboratório (Fig. 4). Nessa etapa, a moldagem foi vazada e duplicada. O primeiro modelo sofreu o troquelamento para a confecção do enceramento (Fig. 5). Esse foi removido do troquel e unido a um conduto de alimentação para sua inserção no anel de revestimento que, por sua vez, foi preenchido com gesso de revestimento e levado ao forno para a evaporação da cera.

O conjunto oco foi submetido à técnica de injeção de pastilhas em dissilicato de lítio MO (Medium Opacity, Ivoclar Vivadent) para confecção de um bloco maciço (Fig. 6) que possui extensão às áreas de contato para melhora das propriedades mecânicas do material.

O bloco foi removido do conduto de alimentação, preparado e jateado com óxido de alumínio para receber incrementos de cerâmicas de fluorapatita. Após estratificação da cerâmica de recobrimento (Fig. 7), o elemento foi sinterizado e glazeado.

 

A peça foi clinicamente provada e recebeu ajustes oclusais, sendo reencaminhada ao laboratório para uma segunda camada de glaze.

Para a cimentação do elemento, foi utilizado o cimento Multilink II (Ivoclar Vivadent). O elemento dentário recebeu, como tratamento, condicionamento ácido fosfórico a 37% (Dentsply) e adesivo A+B do sistema Multilink II (Fig. 8). Paralelamente, a cerâmica acidossensível foi devidamente tratada com condicionamento de ácido fluorídrico 10% (Dentsply) durante 20 segundos (Fig. 9), limpa com esfregaço de ácido fosfórico 37% (Dentsply) durante 20 segundos, silanizada e aquecida. Previamente à cimentação, a cerâmica recebeu uma fina camada de adesivo de cura dual (Ivoclar Vivadent), carregada com cimento Multilink II, manipulado e inserido ao elemento dentário. O cimento foi pré-polimerizado com jatos segundos de luz de quatro, tornando a remoção do excesso de material de fácil execução, excluindo, dessa forma, a necessidade de intervenções mecânica de fios afastadores nessa etapa, simplificando a técnica de cimentação na reanatomização do elemento de forma estética e mimética aos demais elementos.

 

REVISÃO DE LITERATURA E DISCUSSÃO

O tratamento endodôntico devolve ao elemento dentário condições de retornar à sua função e anatomia de diversas maneiras, dependendo da quantidade e qualidade de remanescente dentário2. A presença de cárie dentária, a remoção da câmara pulpar e o alargamento da mesma ferem os princípios biomecânicos de resistência estrutural intrínsecos existentes7, acarretando em problemas de perda significativa de irrigação, falta de elasticidade e resistência à tração1.

Tidimarsh8 relatou que a longevidade do tratamento endodôntico é influenciada pelo tipo de restauração utilizada para a conservação da estrutura dentária sadia. O tratamento clássico para essa situação seria a inserção de pinos intrarradiculares metálicos como retentores de coroas totais2. Tal procedimento vem sendo relatado há décadas, atribuindo finalidade de suporte e estabilidade de restaurações em dentes tratados endodonticamente9. De acordo com Caputo e Standlee10, a utilização de núcleos intrarradiculares tem a finalidade de retenção da restauração, não alterando sua capacidade de reforço do elemento dentário.

Atualmente, controvérsias sobre a necessidade de inserção de pinos são bastante relatadas na literatura, onde alguns defendem a ideia de índices de fraturas em elementos tratados com pinos intrarradiculares11. Em contrapartida, Zarone et al.12 relatam o fortalecimento da região cervical pela utilização de pinos rígidos.

O aumento no uso de pinos de fibra de vidro e de resina aconteceu após a concepção adesiva e o advento de tendências biomiméticas, que possuem módulos de elasticidade semelhantes ao da dentina, passíveis de cimentações adesivas e estéticas13. Entretanto, outros estudos de técnicas de pinos radiculares relatam uma taxa variável de sobrevivência de fraturas radiculares, demonstrando que o simples preparo desse canal também apresenta certo grau de risco acidental, levando à perfuração do conduto radicular14.

Manning et al.15 relataram a pequena influência dos pinos exercida na distribuição de tensões internas do elemento restaurado, localizando-se em uma posição neutra. Dessa forma, sugere-se a pouca interferência do pino na resistência da restauração, abrindo um leque de possibilidades em restaurações livres em pinos.

Uma dessas possibilidades é a endocrown, procedimento utilizado há décadas e com poucos relatos na literatura. O procedimento restaurador livre de quaisquer necessidades de inserção de pino dentário ganhou força no cenário odontológico após o advento de fornos de sinterizações cerâmicas em associação às técnicas de adesivos, garantindo melhores características físicas, mecânicas e estéticas das restaurações16,17.

Estudos in vitro revelam que restaurações do tipo endocrown demonstram fraturas radiculares de valores inferiores quando comparadas às restaurações com retenções radiculares18.

No caso clínico apresentado foi realizado o procedimento em um único elemento posterior, com alta possibilidade de sucesso devido à ampla área de adesividade e retenção da câmara pulpar. De acordo com Al-Ali et al.19, a taxa de sobrevivência em endocrowns confeccionadas sobre molares é de 87,1%, diferente dos pré-molares, que possuem taxa de sucesso de 68,8%.

A endocrown caracteriza-se como um tratamento extremamente conservador que visa o preparo dentário de acordo com seu remanescente. O simples preparo consiste em um ombro em circunferência, com margens em torno de 1mm, com retenção central na câmara pulpar, que busca um embricamento mecânico aliado à adesividade20. Dessa forma, após a remoção das restaurações insatisfatórias, realizou-se apenas o alisamento e aprofundamento subgengival das margens cervicais, redução de 2mm do conduto obturado e o arredondamento interno da câmara pulpar, para maior fidelidade de impressão e melhor encaixe da porção “macho” da restauração cerâmica.

Sua moldagem foi realizada em um único passo com material de silicone de adição, para minimizar falhas durante o procedimento. Isso foi feito com base em um estudo in vitro que realizou experimentos para quantificar a discrepância entre moldagens de único passo e de dois passos, constatando que a primeira técnica apresenta melhores resultados quanto à fidelidade da impressão21.

Em um dos estudos in vivo da técnica, avaliou-se diferentes preparos dentários frente ao desempenho mecânico de elementos confeccionados pelo sistema CEREC. Os resultados revelaram que as coroas preparadas sobre um preparo clássico obtêm maiores valores de resistência, devido ao aumento de espessura da cerâmica5,20. Dessa forma, para maior resistência mecânica da cerâmica, o elemento confeccionado no caso clínico aqui relatado apresentou extensão em dissilicato de lítio aos pontos de contato.

A cerâmica apresentada é composta de 60% de cristais de dissilicato de lítio, com formas longas como agulhas, apresentando-se dispersas e entrelaçadas na matriz vítrea, proporcionando características únicas de resistência de mais de 400MPa e índice de refração semelhante ao elemento dentário. Assim, possui estética agradável, que torna-se passível de estratificação ou maquiagem. A cerâmica utilizada faz parte do sistema IPS e.max (Ivoclar Vivadent), com estratificação de cerâmicas à base de fluorapatita denominada e.max Ceram, que também fazem parte do mesmo sistema6.

Sua confecção foi baseada na técnica da cera perdida, procedimento praticado desde 5.500 a.C22, em que se realiza o enceramento da peça, inclusão do elemento em cera em um anel de revestimento que é ligado a um conduto de alimentação, sendo exposto a altas temperatura para a evaporação da cera. Em seguida, a cerâmica em pastilha é posta em um forno que a liquefaz, para injeção do material na cavidade oca. Dessa forma, encontramos o resultado final do bloco, que pode, de acordo com o planejamento, ser estratificado (como no caso apresentado) ou maqueado.

Para o caso descrito no presente artigo, optou-se pela técnica de estratificação. Dessa forma, o dissilicato de lítio foi injetado como subestrutura, compondo uma porção de núcleo de preenchimento da câmara pulpar e parte da porção coronária, estendendo-se até os pontos de contato, garantindo melhor resistência intrínseca da peça, seguida da estratificação com cerâmica de fluorapatita de cobertura, possibilitando uma melhor reprodução estética do elemento.

Sua cimentação foi realizada por intermédio de adesivos, já que trata-se de uma cerâmica passível de condicionamento ácido6. Dessa forma, conforme recomendado pelo fabricante, foram realizados todos os procedimentos de condicionamento, silanização e adesivo na cerâmica. Já o elemento dentário recebeu tratamento condicionador de ácido fosfórico, seguido da simples aplicação de um adesivo de cura dual pertencente ao conjunto do agente cimentante Multilink II23. O cimento de escolha ocorreu devido à impossibilidade de passagem de luz pela grande espessura do bloco cerâmico.

 

Conclusão

A endocrown apresenta-se como uma alternativa minimamente invasiva que aproveita, de maneira anatômica, todo o remanescente dentário, sem interferir na possibilidade de falhas ou fraturas de pinos radiculares anteriormente preconizados. Como todas as técnicas, as endowcrowns ainda necessitam de maiores estudos e testes que melhorem suas propriedades. No entanto, suas características estéticas e adesivas tornam-a uma promissora candidata para a reconstrução de elementos debilitados coronalmente em regiões de molares.

 

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