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Difusão in vitro de íons hidroxila de pastas medicamentosas à base de hidróxido de cálcio

Resumo

 

Objetivo: analisar, in vitro, o pH de seis pastas endodônticas à base de hidróxido de cálcio [Ca(OH)2]. Métodos: foram formados seis grupos (n = 5 pastas/grupo) mais um grupo controle (água destilada): G1: Ca(OH)2, propilenoglicol 400 (PEG 400) e paramonoclorofenol canforado (PMCC); G2: Ca(OH)2, iodofórmio 1:1, PEG 400 e PMCC; G3: Ca(OH)2, iodofórmio 4:1, PEG 400 e PMCC; G4: Ca(OH)2 e Otosporim®; G5: Ca(OH)2 e óleo de oliva; G6: Ca(OH)2 e clorexidina gel 2%. As pastas foram previamente colocadas em água destilada e armazenadas a 37°C, sendo o pH de cada amostra avaliado em 7 intervalos de tempo diferentes. O ensaio foi realizado em duas etapas, sendo que na segunda fase foi realizada a troca da água destilada após cada leitura. Resultados: em ambas as etapas não foi observada diferença estatisticamente significativa entre os valores de pH do G1, G2, G3 e G4 (p>0,05) nos 7 tempos avaliados. Todos os grupos apresentaram pH mais elevado em relação ao do G5 e do grupo controle (p<0,05), os quais foram estatisticamente iguais entre si (p>0,05). Conclusão: as pastas apresentaram pH alcalino, com variações em função da sua composição, havendo uma dissociação maior quando alguma substância viscosa estava presente na composição.

 

Palavras-chave: Difusão. Endodontia. Hidróxido de cálcio.

 

 

Introdução

No tratamento endodôntico é essencial a prevenção e o controle das infecções pulpares e periapicais. Os resultados da terapia endodôntica dependem da redução ou da eliminação dos microrganismos e da patogenicidade das lesões periapicais e, por isso, o preparo químico-mecânico é considerado uma etapa essencial à desinfecção do sistema de canais radiculares. Entretanto, a eliminação das cepas bacterianas envolvidas no processo infeccioso é difícil de ser realizada e, assim, a medicação intracanal entre as sessões clínicas tem papel fundamental no controle das afecções pulpares1,2.

O hidróxido de cálcio [Ca(OH)2] tem sido usado na Endodontia desde 1920, quando Hermann empregou-o pela primeira vez no capeamento pulpar direto, e posteriormente como medicação intracanal1. Desde então, ele vem sendo amplamente utilizado na clínica odontológica devido a suas propriedades terapêuticas, tanto de forma isolada quanto na composição de cimentos e pastas medicamentosas. O sucesso do Ca(OH)2 como medicação deve-se principalmente ao seu efeito iônico, ocasionado pela dissociação química em íons cálcio e hidroxila3.

Os íons hidroxila difundem-se pela dentina, elevando o pH do meio e produzindo um ambiente alcalino, o que é desfavorável para o crescimento bacteriano uma vez que favorece a lise da membrana celular e a inativação de enzimas dos microrganismos. Esses mecanismos podem explicar a atividade antimicrobiana do Ca(OH)23,4. Além disso, os íons hidroxila ativam a fosfatase alcalina, uma enzima fundamental para o processo de reparo ósseo. Já os íons cálcio permitem a redução da permeabilidade de novos capilares no tecido de granulação de dentes desvitalizados, diminuindo a quantidade de líquido intercelular e ativando a aceleração da pirofosfatase, a qual exerce um papel no processo de mineralização2,5,6.

Diferentes substâncias têm sido utilizadas em conjunto com o Ca(OH)2 nas medicações intracanais, sendo ideais aquelas que modificam o mínimo possível de sua alcalinidade original7. Dentre as substâncias mais utilizadas nessas associações, temos o paramonoclorofenol canforado (PMCC), o propilenoglicol (PEG), o iodofórmio, o óleo de oliva e a clorexidina, os quais podem veicular e atuar potencializando os efeitos benéficos do hidróxido de cálcio aos tecidos perirradiculares1. Os veículos hidrossolúveis aquosos e os hidrossolúveis viscosos têm a capacidade de elevar o pH a um valor alcalino ideal, sendo que a única diferença está no fato de que os aquosos proporcionam uma velocidade de dissociação e difusão de íons hidroxila mais rápida do que os viscosos6.

Diante do exposto, o objetivo desse estudo foi analisar a dissociação iônica de pastas medicamentosas à base de Ca(OH)2 em combinação com diferentes substâncias utilizadas rotineiramente na clínica endodôntica, e verificar a alcalinidade do meio, tão importante para o sucesso dos tratamentos endodônticos.

 

Material e Métodos

Foram manipulados seis tipos de pastas medicamentosas utilizadas no tratamento de diversas situações clínicas em Endodontia, sendo o Ca(OH)2 o componente comum a todas elas. O PEG 400 e a clorexidina gel 2% foram manipulados na farmácia de manipulação Cavallieri (Juiz de Fora/MG). Os demais componentes foram comercialmente obtidos: Ca(OH)2 P.A., iodofórmio e PMCC (Biodinâmica, Ibiporã/PR); Otosporim®, cada ml contendo sulfato de polimixina B 10.000 UI, sulfato de neomicina 5mg e hidrocortisona 10mg (Farmoquímica, Rio de Janeiro/RJ); e a pasta L&C, composta por Ca(OH)2 e óleo de oliva (Dentsply, Petrópolis/RJ).

Foram formados seis grupos experimentais, sendo cada grupo constituído por cinco amostras de uma mesma pasta, a saber: Grupo 1 – Ca(OH)2, PEG 400 e PMCC; Grupo 2 – Ca(OH)2 + iodofórmio na proporção 1:1, PEG 400 e PMCC; Grupo 3 – Ca(OH)2 + iodofórmio na proporção 4:1, PEG 400 e PMCC; Grupo 4 – Ca(OH)2 e Otosporim®, Grupo 5 – Ca(OH)2 e óleo de oliva; Grupo 6 – Ca(OH)2 e clorexidina gel 2%.

Frequentemente é recomendada a pasta medicamentosa espessa, denominada por alguns autores como “consistência de creme dental”, sendo a relação pó/líquido muito variável3,7. Para determinação das proporções de cada componente, foi utilizada a quantidade equivalente a uma colher de medida, cujo volume é de 0,13cm3 para medir as substâncias em pó. Para substâncias líquidas foi empregada uma medida aproximada do volume de uma gota (0,05ml). Foram realizadas cinco manipulações, tendo como base a consistência desejada (creme dental) e, ao final, estabelecendo a proporção de cada substância empregada na manipulação experimental.

Cada uma das cinco pastas de cada grupo foi manipulada e a quantidade equivalente a uma colher de medida (0,13cm3) foi colocada isoladamente em recipientes contendo 15ml de água destilada e deionizada. Um recipiente não recebeu a pasta, permanecendo apenas com 15ml de água destilada e deionizada, funcionando como controle negativo. As amostras foram devidamente armazenadas em frascos fechados e mantidos em estufa a 37ºC para eliminar os efeitos do meio ambiente até que fossem realizadas todas as mensurações2.

Na primeira fase do experimento, as pastas analisadas permaneceram imersas em água destilada durante todos os períodos de análise, sendo as leituras denominadas G1A, G2A, G3A, G4A, G5A e G6A para os respectivos grupos. Na segunda fase do ensaio, foram realizadas trocas entre cada leitura da água destilada onde estavam inseridas as pastas, sendo as leituras denominadas G1B, G2B, G3B, G4B, G5B e G6B para os respectivos grupos. Para análise da dissociação iônica das pastas medicamentosas de cada grupo foi utilizado um pHmetro digital (Modelo PH 710, São Paulo) devidamente calibrado com soluções-tampão padronizadas com pH 7,0 ± 0,02 e pH 4,0 ± 0,02. Tal aparelho constitui-se de um eletrodo de vidro (EPC 70) ligado a um display digital que permite a leitura do valor do pH. Para realização das medições, o microeletrodo calibrado foi mantido em contato com a solução por aproximadamente 45 segundos, até que a leitura do pH fosse estabelecida9.

As medições foram feitas aos 15 e 30 minutos, 1, 24 e 48 horas, e com 7 e 14 dias após a manipulação. Os valores de pH encontrados em função dos intervalos de tempo foram devidamente inseridos em uma planilha do programa Microsoft Excel®, onde tiveram a média das cinco pastas de cada grupo calculadas. Os dados foram analisados por meio do programa estatístico SSPS 15.0 for Windows (Chicago, EUA). Foi realizada análise de variância (ANOVA) seguida por post hoc de Scheffé para comparação entre os grupos de pastas medicamentosas. O nível de significância adotado foi de 5%.

 

Resultados

Na primeira fase do experimento, o valor médio de G1A em t=15’ foi pH=10,40; com crescimento exponencial até t=24h (pH=12,16) e estabilização em t=14 dias (pH=12,31). Leituras de pH estatisticamente semelhantes (p>0,05) ocorreram nos demais grupos analisados: G2A 15’ (pH=10,33), 24h (pH=12,17), e 14 dias (pH=12,24); G3A 15’ (pH=10,46), 24h (pH=12,21) e 14 dias (pH=12,32); G4A 15’ (pH=10,62), 24h (pH=12,21) e 14 dias (pH=12,31); G6A 15’ (pH=9,62), 24h (pH=12,24) e 14 dias (pH=12,33). G5A e controle apresentaram comportamento semelhante (p>0,05), com valores de pH inferiores a aqueles encontrados para os demais grupos (p<0,05 para todas as comparações): G5A 15’ (9,17), 24h (8,98) e 14 dias (8,53) e grupo controle 15’ (9,26), 24h (9,09) e 14 dias (8,77) (Fig. 1).

Na segunda fase do experimento, G1B apresentou em t=15’ um pH=10,38, havendo um aumento até t=24h (pH=12,14) ocorrendo, assim como na primeira fase do experimento, uma estabilização em t=14 dias (pH=12,23). Os demais grupos analisados apresentaram comportamento semelhante: G2B 15’ (pH=10,28), 24h (pH=12,18) e 14 dias (pH=12,26); G3B 15’ (pH=10,42), 24h (pH=12,18) e 14 dias (pH=12,28); G4B 15’ (pH=10,56), 24h (pH=12,20) e 14 dias (pH=12,30). O G6B apresentou em t=15’ o pH=9,63, havendo um crescimento em t=30’ (pH=10,42) e estabilizando até t=14 dias (pH=10,58). Os grupos G5B e controle apresentaram valores de pH inferiores aos demais grupos (p<0,05 para todas as comparações): G5B 15’ (pH=9,16), 24h (pH=8,92) e 14 dias (pH=8,55) e grupo controle 15’ (pH=9,17), 24h (pH=9,21) e 14 dias (pH=9,18) (Fig. 2).

Em ambas as fases do experimento não foi observada diferença estatisticamente significativa entre os valores de pH de G1, G2, G3 e G4 (p>0,05 para todas as comparações). Todos os grupos apresentaram pH mais elevado em relação ao do G5 e do controle (p<0,05 para todas as comparações), os quais foram estatisticamente iguais entre si (p>0,05 para todas as comparações). O grupo controle permaneceu sem alterações significativas dos valores de pH ao longo de todos os períodos.

G6 apresentou um comportamento particular, com pH inicial estatisticamente inferior aos dos grupos G1, G2, G3 e G4, e superior aos do G5 e controle (p<0,05 para todas as comparações). Na primeira fase, quando não houve a troca de água do meio, os valores de pH de G6A apresentaram-se, inicialmente, inferiores, mas com crescimento exponencial, acompanhando o comportamento dos grupos G1A, G2A, G3A e G4A. Na segunda fase do experimento, onde foi realizada a troca de água do meio, G6B apresentou um pH alcalino, porém com valores mais baixos ao longo dos períodos em relação aos grupos G1B, G2B, G3B e G4B (p<0,05 para todas as comparações).

 

 

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Quando comparadas as duas fases do ensaio, foi observado que na segunda fase (com a troca periódica da água onde estavam inseridas as pastas) os valores de pH foram inferiores, entretanto, essa diferença diminuiu ao longo dos períodos. Tal diferença não foi considerada estatisticamente significativa (p=0,709).

 

Discussão

A associação de diversas substâncias ao Ca(OH)2 vem sendo proposta como forma de potencializar seus efeitos benéficos aos tecidos periapicais7. Dentre eles, podemos destacar a importância da alcalinização promovida pela pastas à base de Ca(OH)2 no sucesso do tratamento endodôntico em situações clínicas diversas e frequentes, como em casos de necrose pulpar, especialmente com lesões periapicais; nas reabsorções radiculares e durante a proservação de traumatismos dentários.

Os processos inflamatórios e infecciosos promovem uma acidificação do pH tecidual ideal para o desenvolvimento de microrganismos. A atmosfera alcalina criada pelo Ca(OH)2 previne e muitas vezes impede a evolução desses processos, sendo seu efeito diretamente proporcional ao seu potencial alcalinizante. O pH alcalino promovido por essas medicações é efetivo na paralisação do crescimento ou eliminação de cepas patogênicas presentes em infecções endodônticas persistentes, como, por exemplo, o Enterococcus faecalis1,10,11.

Os efeitos da dissociação de íons hidroxila através da leitura dos valores de pH, e a liberação de íons cálcio de diferentes veículos adicionados ao Ca(OH)2, foram estudados por diversos autores6,8,9,12-16. Em todos esses experimentos foram encontrados maiores valores de pH para as pastas com veículo viscoso, o que, teoricamente, proporcionaria uma dissociação iônica mais rápida para os íons hidroxila em relação aos veículos oleosos. Tal afirmação está de acordo com os resultados do presente estudo, onde as pastas com veículos viscosos (G1, G2, G3, G4 e G6) apresentaram valores de pH mais elevados em relação à associação contendo óleo de oliva (G5), um veículo oleoso.

O uso de um pHmetro de alta impedância aumenta a acurácia dos resultados, além de fornecer dados numéricos que poderão ser analisados. Embora possam ser utilizados outros métodos, como as tiras de papel com indicadores de pH, eles apresentam menor precisão e podem dificultar a interpretação correta dos resultados17.

Os períodos de mensuração do pH devem respeitar o tempo necessário para manipulação das pastas, inserção delas nos frascos contendo água destilada e início das análises. No presente estudo, as primeiras medições foram realizadas após 15 minutos, uma vez que períodos inferiores a esse, dentro do método aplicado, se tornariam impossíveis devido ao número de frascos a serem medidos em cada grupo por um mesmo operador. Observamos que em alguns estudos, no entanto, as medidas do pH, com métodos semelhantes, foram realizadas em menores períodos de tempo1,9,15,16.

Os resultados do presente estudo demonstraram que na primeira fase do experimento a maioria dos grupos mantiveram pH inicial alcalino com crescimento exponencial até o período de 24 horas. Após esse período observamos equalização e estabilização da leitura do pH. Esse comportamento, no entanto, não foi observado para G5 [Ca(OH)2 e óleo de oliva] e para o grupo controle. Além de apresentarem um pH menor que o dos demais grupos, ainda demonstraram comportamento inverso, havendo o decréscimo do pH durante os períodos observados. Tal comportamento do pH está de acordo com resultados encontrados por Pacios et al.14, Ferreira et al.15 e Nunes e Rocha18.

A troca periódica da água onde estavam as pastas a serem testadas, na segunda fase do experimento, foi realizada para evitar a saturação do meio, já que ele não apresentaria trocas iônicas, como ocorre na situação clínica da medicação intracanal8. Esses autores demonstraram que os valores de pH das pastas medicamentosas por eles estudadas apresentaram-se diferentes para a maioria dos grupos, apenas nos períodos anteriores a 24 horas. A partir desse intervalo, tais grupos não apresentaram variações no pH entre si, o que indica a não interferência dessa variável. Concluíram que todas as pastas apresentam-se com o pH de comportamento similar em todos os períodos analisados. Tais achados estão de acordo com os resultados encontrados no presente estudo para a maioria das pastas analisadas (G1, G2, G3 e G4).

O hidróxido de cálcio tem sido a medicação intracanal mais utilizada atualmente. De acordo com Herrera et al.19, o hidróxido de cálcio é um material adequado para ser usado como curativo de demora em dentes com lesão periapical, uma vez que a avaliação em longo prazo demonstra resultados clínicos satisfatórios após o tratamento endodôntico. Provavelmente seu efeito mineralizador e antimicrobiano deve-se à sua dissociação química em íons de cálcio e hidroxila20.

A adição de substâncias ao Ca(OH)2 para a formulação de uma pasta medicamentosa clinicamente viável deve preservar suas principais propriedades, tais como dissociação química em íons cálcio e hidroxila, pH alcalino e biocompatibilidade tecidual. Acredita-se que a maioria das associações propostas nesse estudo preservou as características iônicas desejáveis para uma medicação endodôntica.

 

Conclusão

As pastas medicamentosas analisadas apresentaram valores de pH alcalinos, sendo que as pastas com veículos viscosos (PEG, PMCC, Otosporim® e clorexidina) apresentaram valores de pH elevados em relação a aquele encontrado para a associação contendo veículo oleoso — óleo de oliva. As trocas da água do meio onde foram inseridas as pastas medicamentosas não interferiram significativamente na dissociação iônica das associações.

 

Agradecimentos

Os autores agradecem à UFJF pelo apoio científico e à CAPES pela bolsa de doutorado concedida.

 

 

Como citar este artigo:

Bretas LP, Alfenas CF, Silva AF, Chaves MGAM, Campos CN. In vitro diffusion of hydroxyl ions from medicaments pastes based on calcium hydroxide. Dental Press Endod. 2012 July-Sept;2(3):36-41.

» Os autores declaram não ter interesses associativos, comerciais, de propriedade ou financeiros, que representem conflito de interesse nos produtos e companhias descritos nesse artigo.

 

Liza Porcaro de Bretas

Endereço para correspondência:

Universidade Federal de Juiz de Fora – Faculdade de Odontologia

Departamento de Clínica Odontológica – Campus Universitário – Bairro Martelos

CEP: 36036-900 – Juiz de Fora/MG.

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