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Desbridamento foraminal: reflexões e insight

Resumo

Durante a terapia endodôntica, uma manobra realizada no tratamento do canal, independentemente de técnica manual ou com instrumentos rotatórios, é o desbridamento foraminal, onde o instrumento inicial é utilizado além da abertura foraminal (0,5 a 1mm). Algumas reflexões sobre as implicações clínicas dessas manobras incluem as dimensões reais da espessura do ligamento periodontal e das características reacionais inflamatórias e reacionais do tecido conjuntivo que o compõe. Essas reflexões e um insight para futuros trabalhos são apresentados nesse trabalho.

Palavras-chave: Instrumentação. Rotatórios. Reparo apical. Reparo periapical.

O conceito de patência foraminal é baseado na colocação de um instrumento endodôntico de pequeno diâmetro (no máximo nº 25) no forame apical. Para alguns autores, o instrumento de patência deve ultrapassar, em média, 1mm da abertura foraminal, estando na intimidade do ligamento periodontal1,4,5. Contudo, para um instrumento estéril e de pequeno diâmetro, esse fato não representa maiores problemas clínicos5. Esse protocolo induz algumas reflexões sobre as implicações clínicas dessas manobras:

1. O ligamento periodontal será ultrapassado de lado a lado pelo instrumento, haja vista que sua espessura varia entre 0,2 e 0,4mm, com média de 0,25mm. De lado a lado significa que o instrumento ultrapassará o limite mais apical do cemento e chegará ao osso fasciculado além da cortical óssea alveolar, também chamada de lâmina dura.

2. Como um tecido conjuntivo fibroso altamente organizado é composto por 50% de vasos sanguíneos, inevitavelmente haverá o desencadeamento de um processo inflamatório, inicialmente, agudo, com o acúmulo localizado de substâncias (exsudato) e células (infiltrado), especialmente neutrófilos2. Em dois a três dias, se as células e substâncias não encontrarem bactérias em número significativo, elas migrarão e serão reabsorvidas, sem que o exsudato seroso evolua para uma forma purulenta2. Esse quadro pode ser nominado de pericementite (periodontite) apical aguda serosa, induzida fisicamente pelos instrumentos endodônticos, que evoluirá para o reparo, haja vista que sua causa será removida pela obturação do canal.

3. Se o dente em tratamento for portador de necrose pulpar e o canal radicular estiver contaminado, mas sem lesão periapical, espera-se que a possibilidade de contaminar o ligamento periapical com maior número de bactérias aumente consideravelmente, aumentando a necessidade de maiores cuidados nesse sentido.

4. Quando o dente for portador de lesão periapical crônica — incluindo pericementite apical crônica, granuloma periapical, cisto radicular e abcesso dentoalveolar crônico —, ultrapassar os instrumentos além de 1mm não provocará danos ao ligamento periodontal, haja vista que, nessa região, agora se tem um processo inflamatório e a estrutura ligamentar foi praticamente toda perdida. Mas, haverá maior risco de tornar o processo mais agudo por “empurrar” acidentalmente bactérias isoladas e ou em forma de aglomerados para os tecidos apicais já contaminados nos casos de lesões periapicais crônicas3. Cuidados maiores devem ser tomados nesse sentido.

5. Se o objetivo de ultrapassar esses limites for uniformizar as paredes do canal cementário e deixá-las em continuidade com as paredes do canal principal, em casos de biopulpectomia não haveria a necessidade de uma instrumentação tão além do forame apical, haja vista que as paredes cementárias não estão contaminadas, nem reabsorvidas.

6. Apesar do limiar de sensibilidade dolorosa e desconforto variar de paciente para paciente, inevitavelmente, nos protocolos em que o instrumento de trabalho ultrapassa os limites do forame apical e atravessa o ligamento periodontal apical haverá um processo inflamatório agudo inicial por dois ou três dias, que pode gerar desconforto caracterizado por sensibilidade dolorosa ao toque mastigatório ou espontânea. O profissional deve estar preparado para administrar com frequência as drogas analgésicas e anti-inflamatórias durante esse período, caso haja queixa do paciente. Ou, ainda, o profissional pode assumir que, em todos seus casos em que esse protocolo for adotado, administrará essas drogas para o maior conforto do paciente.

7. Nos casos em que persistirem os sinais e sintomas inflamatórios, deve-se considerar a possibilidade de uma maior presença de bactérias “levadas ou empurradas” pelos instrumentos na região apical. O processo pode evoluir para uma abscedação do processo. Nesses casos de um quadro com maior sensibilidade, deve-se considerar a possibilidade de uma antibioticoterapia para evitar a proliferação bacteriana nos tecidos apicais, abortando possíveis focos de abscedação.

8. Se considerarmos inevitável a inflamação induzida na região apical quando se adota a instrumentação além do forame apical, aumenta-se, também, a maior possibilidade de bactérias nos tecidos periapicais “levadas ou empurradas” pelos instrumentos no ligamento periodontal apical. Dessa forma, a administração preventiva de medicamentos logo após o tratamento endodôntico em pacientes especiais, como cardiopatas, nefropatas, imunodeprimidos e outros, deve ser ressaltada.

9. Mesmo esperando uma melhor adaptação do material obturador nas paredes do canal instrumentado em um protocolo com instrumentação além forame apical, deve-se ressaltar que não haverá um fechamento hermético e uma adaptação perfeita na interface material-canal na altura do forame apical alargado, pois a anatomia do forame apical é muito irregular em seu formato (Fig. 1) e uniformidade de suas paredes em termos espaciais e superficiais.

10. A inflamação representa um mecanismo de defesa local do organismo muito eficiente, que consegue eliminar bactérias isoladas com relativa facilidade. Nos primeiros dois ou três dias, os neutrófilos, que chegam 90 minutos depois da agressão física, fagocitam as bactérias, e mesmo que regurgitem enzimas e substâncias tóxicas antibacterianas para os tecidos, como são poucas essas bactérias, no local não se formam focos de abscedação ou microabscessos. A abscedação e formação exuberante de pus acontece quando as bactérias estão em um grande número e/ou organizadas em forma de biofilmes microbianos, quando assumem uma maior resistência por falta de acesso das células, substâncias de defesa, antissépticos e antibióticos2.

11. Apesar de regularizar e limpar a parede do canal cementário, a instrumentação de canais além do forame apical não elimina os biofilmes microbianos aderidos à superfície externa do ápice, ainda menos os localizados nas irregularidades anatômicas, nos deltas apicais e/ou nas áreas de reabsorção apical3. Essa situação explica a persistência de uma pequena, mas importante, porcentagem de insucessos endodônticos quando os dentes são portadores de lesões periapicais crônicas.

12. A última fase de uma inflamação, ou reparação, caracteriza-se pela reconstrução das áreas desorganizadas e destruídas apenas depois que o agressor local for eliminado. Os vasos e as células do ligamento periodontal vizinho proliferam e colonizam a região formando um tecido imaturo, conhecido como tecido de granulação, que gradativamente amadurece em tecido conjuntivo maduro estrutural e funcionalmente. As estruturas apicais, como cemento e o ligamento, se restabelecem, assim como se reinstalam os limites ósseos a partir do mesmo tecido de granulação, promovendo-se, também, a completa reparação óssea periapical.

13. O conceito de infecção refere-se ao contato de microrganismos (bactérias, vírus e fungos) em outro organismo vivo. Uma infecção pode se caracterizar: a) pela latência dos microrganismos sem provocar nenhuma agressão, ou ainda, b) pela indução de agressões e reações teciduais que caracterizam as doenças. As técnicas endodônticas, por mais evoluídas que sejam, tecnicamente ou tecnologicamente, não podem garantir que eliminam todos os microrganismos da região apical depois da obturação do canal. No entanto, a redução significativa da quantidade de microrganismos é mandatória, pois implicará numa reação inflamatória que eliminará e/ou controlará essa infecção/contaminação apical, sem desconforto clínico para o paciente.

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Considerações finais e insight

A clínica endodôntica, incluindo a parte referente à imaginologia, oferece vários parâmetros para se estabelecer critérios de sucesso e insucesso para os tratamentos realizados. Esses critérios podem e devem ser aplicados nas pesquisas em seres humanos. Pesquisas aplicadas em humanos são diretamente extrapoláveis e, respeitados os preceitos éticos, são muito mais confiáveis se considerarmos as especificidades da espécie.

Nas pesquisas sobre os novos protocolos de tratamento com ultrapassagem dos limites apicais até 1mm, se deveria construir casuísticas avaliadas à luz de critérios como: dor e desconforto (tipo, intensidade e duração), oclusão dolorosa (tipo, intensidade e duração), necessidade de terapia medicamentosa analgésica, anti-inflamatória e antibiótica (tempo, tipo, custo e eficiência).

Paralelamente, esses resultados deveriam ser comparados utilizando-se os mesmos parâmetros em casuísticas semelhantes, mas utilizando os protocolos mais clássicos de terapia endodôntica nos quais os limites apicais de trabalho se restringissem ao canal principal e cementário.

Da mesma forma, nessas mesmas casuísticas, em subgrupos distintos, se poderia estudar as imagens anteriores da região apical, sem e com lesões periapicais crônicas de forma comparativa à evolução do reparo apical e periapical. As imagens digitais radiográficas e tomográficas oferecem, atualmente, um elevado grau de precisão de análise.

Entre os parâmetros passíveis de comparação e avaliação estão os limites da obturação, extravasamentos de material, largura do espaço periodontal apical, continuidade da lâmina dura, neoformação óssea reparatória, reabsorção apical e grau de comprometimento estrutural, além da frequência de fraturas de instrumentos. As novas tecnologias de análise evoluíram muito e permitem, agora, avaliar em humanos os avanços da terapia endodôntica.

» Os autores declaram não ter interesses associativos, comerciais, de propriedade ou financeiros que representem conflito de interesse nos produtos e companhias descritos nesse artigo.

Como citar este artigo:

Consolaro A, Roldi A, Intra JBG, Intra TJA, Bittencourt G. Foraminal debridement: reflections and insight. Dental Press Endod. 2013 May-Aug;3(2):12-5.

 

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