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Atendimento endodôntico emergencial de paciente com diagnóstico inconclusivo para doença de von Willebrand

Resumo

Introdução: pacientes com distúrbios hemorrágicos precisam de cuidados especiais quando submetidos a procedimentos odontológicos. Objetivos: fornecer informações sobre como tratar um paciente com um diagnóstico provável da doença de von Willebrand e abscesso periapical agudo no dente 23. Métodos: paciente do sexo feminino, leucoderma, 35 anos de idade, se dirigiu ao Pronto Atendimento Odontológico da Faculdade de Odontologia da Universidade Federal do Paraná, apresentando cárie extensa abaixo do nível gengival, projetando-se para o palato, também com fratura da coroa, expondo o canal radicular ao meio bucal. A atenção estava focada em isolar o campo operatório, o que não poderia ser feito de forma convencional devido à extensão da cárie, à proliferação de tecido gengival e às condições sistêmicas do paciente. Conclusão: a estratégia utilizada nesse caso foi eficaz na gestão da coagulopatia e permitiu cuidados de emergência a serem realizados sem complicações.

Palavras-chave: Fator de von Willebrand. Endodontia. Abscesso periapical.

 

 

Introdução

A doença de von Willebrand (DVW) é uma desordem hereditária hemorrágica causada por deficiência ou disfunção de uma proteína chamada fator de von Willebrand1. O diagnóstico é feito em várias etapas2. Os testes específicos para uma completa caracterização laboratorial são necessários para confirmar ou excluir o diagnóstico3. Enquanto isso, os pacientes estão suscetíveis a cuidados endodônticos de caráter emergencial4,5. Procedimentos endodônticos podem ser desenvolvidos de forma segura e com resultados previsíveis, desde que um plano de tratamento adequado seja estabelecido.

O objetivo do presente caso clínico é descrever o atendimento endodôntico emergencial de um paciente com abscesso periapical agudo e com suspeita da DVW.

 

Relato de caso

Uma mulher de 35 anos de idade se apresentou ao Pronto Atendimento Odontológico da Universidade Federal do Paraná, Faculdade de Odontologia, com dor na região superior esquerda. Um desconforto na fossa canina, de aproximadamente duas semanas, culminando em febre e dor contínua, espontânea e duradoura, que não foi aliviada por analgésicos comuns, foi relatado. A paciente apresentava histórico de sangramento incessante após uma extração dentária, que exigiu hospitalização seis meses antes dessa consulta inicial. Ela apresentou uma carta do Centro de Atendimento de Medicina da Universidade Federal do Paraná relativa à suspeita de DVW, solicitando tratamento dentário e relatando que 1g de ácido g aminocaproico havia sido administrado a cada 6 horas, durante 7 dias.

O exame clínico mostrou fratura da coroa e cárie extensa, expondo o canal da raiz ao meio bucal nos últimos quatro meses. Houve sensibilidade à palpação e ausência de edema extrabucal. O exame radiográfico mostrou um tratamento endodôntico pobre, limitado ao terço médio do canal radicular e radiolucidez apical (Fig. 1, 2).

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O tratamento foi realizado com anestesia com mepivacaína 2% com epinefrina 1:100.000 (DFL Indústria e Comércio S.A.). O isolamento absoluto não pôde ser feito de forma convencional, devido à extensão da cárie, da proliferação de tecido gengival e das condições da paciente. O dique de borracha foi sequencialmente perfurado por três vezes, a fim de envolver os dentes 22, 23 e 24. Depois de posicionado, etil cianoacrilato (Loctite, Super Bonder Precisão) foi aplicado entre o lençol de borracha e o periodonto nas superfícies vestibular e palatina (Fig. 3). A irrigação com solução de hipoclorito de sódio a 1% foi usada para desinfetar o campo operatório e como solução de irrigação. Instrumentos especiais foram preparados usando limas manuais #15 e #20, conforme Kobayashi6, para remover o material de obturação, em associação ao óleo de laranja (Citrol, Fórmula & Ação). Uma lima #70 (Dentsply-Maillefer,) penetrou alguns milímetros em direção apical, seguida por lima #60 (Dentsply-Maillefer) que, após ser girada no interior da massa obturadora, foi tracionada e removeu o material de obturação de uma só vez (Fig. 4, 5). Assim que o material de obturação foi removido, iniciou-se uma drenagem espontânea, que foi mantida durante alguns minutos. O canal foi completamente esvaziado utilizando-se instrumentos #15, #20 e #25 (Dentsply-Maillefer) e preenchido com paramonoclorofenol a 2% (PRP, Fórmula e Ação) como curativo de demora.

Uma ponta de sucção auxiliar serviu para controlar um leve sangramento do tecido gengival, originado a partir do trauma inevitável causado pelas condições do dente. Cimento de óxido de zinco e eugenol (IRM, Dentsply Indústria e Comércio Ltda.) foi usado para selar a cavidade (Fig. 6).

 

Paracetamol 750mg de 8 em 8 horas, durante dois dias; e 500mg de amoxicilina de 8 em 8 horas, durante 7 dias, foram prescritos à paciente, a qual foi encaminhada ao departamento de cirurgia (Fig. 7), onde foi realizada uma avaliação adequada a fim de indicar posterior remoção do restante da raiz.

 

Discussão

A DVW é uma entidade clínica heterogênea, com graus variáveis de manifestações hemorrágicas. Ela apresenta diferentes fenótipos clínicos, sendo a hemorragia mucocutânea o mais comum, especialmente epistaxe e menorragia. Sangramentos em outras regiões, como no trato geniturinário e no aparelho digestivo, também foram relatados, mas com menor frequência3. A paciente apresentou uma úlcera crônica com sangramento ativo no membro inferior esquerdo, sangramento urinário e, diariamente, epistaxe e menorragia.

Os exames complementares são necessários para confirmar a doença. Testes de triagem para avaliação inicial de coagulopatias hemorrágicas, testes específicos para confirmação diagnóstica e testes de discriminação que permitem a classificação da doença, podem levar algum tempo para obtenção de resultados conclusivos3.

Apresentando infecção, a paciente foi conduzida para o cuidado de emergência do curso de Odontologia, por intermédio do Hospital Universitário, mas o diagnóstico da doença de VWD ainda não era conclusivo. A paciente estava sob prescrição de um antifibrinolítico. Cuidados especiais devem ser tomados durante procedimentos odontológicos, a fim de se evitar complicações3.

Não há restrições quanto ao uso de vasoconstritores, os quais fornecem maior tempo clínico e conforto para os procedimentos de emergência endodôntica4,7. Em técnicas de anestesia infiltrativa e intraligamentar, a administração prévia de fatores de coagulação não é necessária. A administração é recomendada para o bloqueio do nervo alveolar inferior8, em virtude da possibilidade de hemorragia na região retromolar, com a presença de trismo e risco de asfixia4. A administração de um antifibrinolítico foi benéfica porque impediu hemorragia excessiva pós-trauma para o tecido gengival hiperplásico7.

O uso do dique de borracha é quase obrigatório na prática endodôntica moderna, para fornecer campo operacional asséptico e para proteger o paciente contra a aspiração de corpo estranho ou ingestão9.

Quando as margens da raiz são submersas por invaginações dos tecidos gengivais, é necessário extirpar o tecido hiperplásico o suficiente para expor as margens, o que não foi possível nesse caso. Um método alternativo para manter o isolamento absoluto foi aplicado. O dique de borracha foi perfurado por três vezes, a fim de envolver os dentes 22, 23 e 24. Os furos foram unidos usando-se uma tesoura, e etil cianoacrilato foi aplicado entre o dique de borracha e o tecido gengival nas superfícies vestibular e palatal. Não foi necessário o uso de grampos de isolamento, e o processo pôde ser executado da forma menos traumática possível10.

O procedimento endodôntico foi realizado removendo-se o material de obturação com instrumentos especiais e um solvente, a fim de permitir a drenagem e o alívio da dor.

Medicação sistêmica para a gestão da dor e da infecção deve ser cuidadosa para esses pacientes. Analgésicos derivados de ácido acetilsalicílico, bem como anti-inflamatórios não esteroidais (AINEs), devem ser evitados porque afetam a agregação de plaquetas, quando utilizados durante períodos prolongados. Não há restrições quanto ao uso de antibióticos4,11.

No tratamento de pacientes com distúrbios hemorrágicos, a interação entre profissional e hematologista é um pré-requisito para que os procedimentos ocorram em segurança11. Durante as emergências odontológicas, o conhecimento dos riscos é essencial no processo da tomada de decisão, uma vez que as medidas locais de controle de sangramento podem não ser suficientes4,12,13.

 

Conclusão

Cuidados endodônticos de emergência podem ser necessários enquanto o diagnóstico de DVW ainda não for confirmado. Em pacientes com distúrbios hemorrágicos, os procedimentos de emergência devem ser definidos para intervenções odontológicas seguras e previsíveis. Um método alternativo para se manter o isolamento absoluto pode ser utilizado e o processo deve ser realizado de forma minimamente traumática.

 

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