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Análise da morfologia do terço apical em canais radiculares após preparo biomecânico: rotações alternada e contínua (sistema Easy RaCe)

Resumo

 

Objetivo: o presente trabalho tem como principal objetivo analisar a presença de desvio apical de acordo com a técnica de instrumentação e os instrumentos utilizados durante o preparo biomecânico em canais radiculares. Métodos: realizou-se testes in vitro com os dois tipos de preparo (alternado e contínuo) em canais radiculares, em um total de 24 unidades dentárias divididas em dois grupos de acordo com os tipos de preparos biomecânicos realizados. Conclusão: ao final do experimento, pode-se observar que não ocorreu diferença significativa entre os dois tipos de instrumentais das técnicas empregadas. Isso sugere uma maior atenção ao preparo alternado, que, devido ao seu baixo custo, pode ser incluído nos CEOs (Centros de Especialidades Odontológicas) do Ministério da Saúde do Governo Federal do Brasil.

 

Palavras-chave: Ápice dentário. Preparo de canal radicular. Endodontia.

 

 

 

Introdução

Entre os problemas enfrentados para se preservar as unidades dentárias, temos a doença cárie, que ainda é a principal alteração patológica responsável pela perda de dentes antes da cronologia natural.

A Endodontia é a ciência que envolve a etiologia, a prevenção, o diagnóstico e o tratamento das alterações patológicas da polpa dentária e de sua repercussão na região periapical e, consequentemente, no organismo11. Para realizar o tratamento endodôntico, seja qual for sua natureza, existem várias técnicas, medicamentos e instrumentos para preparação e/ou tratamento de alterações fisiopatológicas periapicais.

Para muitos, a instrumentação, ou preparo biomecânico, ainda é a etapa mais importante do tratamento endodôntico. Por suas particularidades e relevância, essa etapa foi escolhida como base do presente estudo, cujo foco é analisar um dos principais problemas que acontecem durante o preparo biomecânico — o desvio apical —, além de analisar duas formas de instrumentação e seus respectivos instrumentos. Assim, será analisada mais de uma face da instrumentação endodôntica.

O estudo baseia-se na análise da morfologia do terço apical em canais radiculares após o preparo biomecânico realizado com rotação alternada ou com rotação contínua, considerando-se os instrumentos utilizados. Assim, será destacada a técnica de instrumentação e o instrumento endodôntico que não permitem a ocorrência de desvio apical após o preparo biomecânico. Isso será esclarecido através de análise radiográfica de dupla exposição à presença ou ausência de desvio apical após a instrumentação alternada ou rotatória contínua.

 

Desenvolvimento

Segundo a literatura clássica, observa-se que o preparo biomecânico tem como objetivo o esvaziamento, sanificação e ampliação dos canais radiculares, de forma cônica e contínua. Isso requer habilidade manual, paciência, domínio da técnica empregada e conhecimento anatômico, além de respeito aos princípios biológicos presentes no processo do tratamento.

A forma final do canal radicular deve ser uma réplica da configuração original do canal, em forma e conicidade, mas com maior diâmetro, permitindo sua adequada limpeza e obturação. A maior dificuldade em se alcançar esses objetivos está relacionada ao preparo dos canais curvos e/ou atrésicos. Tais ideais podem ser alcançados utilizando-se tanto o preparo manual quanto o automatizado. Porém, devemos lembrar que os instrumentos manuais, em alguns casos, não alcançam esses objetivos, por apresentarem limitações físicas.

A alteração que mais se destaca é o desvio apical (ou transporte apical), causado pela ação dos instrumentos endodônticos durante o preparo biomecânico no terço apical dos canais radiculares. Para diminuir a sua ocorrência, bem como a de outras alterações, têm sido propostos outros métodos e novos instrumentos para o preparo dos canais radiculares, com destaque para os instrumentos de níquel-titânio (NiTi ou Nitinol) com composição de 55 a 60% de níquel e de 40 a 45% de titânio. Os instrumentos são fabricados por usinagem, a partir de uma haste cônica metálica de secção circular.

Esses instrumentos de NiTi apresentam as seguintes propriedades físicas: são anticorrosivos, antimagnéticos, apresentam baixo módulo de elasticidade, superelasticidade e o chamado efeito de memória de forma, que possibilita à liga de NiTi retornar à sua forma original após sofrer deformação. Tais qualidades permitem que esses instrumentos acompanhem a anatomia dos canais com maior facilidade, impedindo o deslocamento apical e mantendo  sua forma original.

Algumas alterações são observadas quando esses sistemas são comparados aos instrumentos convencionais, como diferentes conicidades e modificações nas superfícies radiais, ângulos de incidência da lâmina de corte, ângulos helicoidais, morfologia da ponta (guia de penetração) e secção transversal.

Há um leque de opções de sistemas de NiTi para rotação contínua, e cada fabricante possui instrumentos com características próprias. Porém, observa-se que tais instrumentos não seguem a identificação e/ou configuração da ISO/FDI. Esses instrumentos foram idealizados para ser acionados e introduzidos no interior do canal radicular girando, no sentido horário, com velocidade constante. O preparo realizado tem sentido coroa-ápice, promovendo a limpeza e a modelagem dos canais de forma simultânea.

O uso da instrumentação mecânica rotatória com instrumentos de NiTi tem sido proposto com o intuito de vencer curvaturas e evitar possíveis deformações geradas pela deficiência dos instrumentos convencionais de aço inoxidável, buscando obter um preparo ideal, sem promover alterações no forame apical, além de minimizar o transporte de material para o periápice.

Na linha de estudo do presente trabalho, observam-se alguns trabalhos que se dedicaram ao estudo dos acidentes anatômicos. Pode-se citar o trabalho realizado por Aguiar et al.7, em 2006, o qual teve como tema a avaliação radiográfica do desvio apical em canais instrumentados com sistema de NiTi. Nesse estudo, observou-se que, após a instrumentação, as imagens obtidas pela sobreposição radiográfica mostraram uma maior eficiência nos canais preparados com sistemas de NiTi em relação às limas convencionais de NiTi. Contudo, as diferenças não foram estatisticamente significativas.

Pereira et al.6, em 2007, compararam qualitativamente áreas tocadas pelos instrumentos utilizando instrumentos de aço inox e sistema de NiTi. Foram utilizadas 32 raízes mesiovestibulares de molares superiores in vitro. Após os procedimentos laboratoriais, as moldagens foram examinadas e separadas, quanto aos preparos nos terços e faces, com base na classificação apresentada em trabalhos semelhantes. De acordo com os resultados, não foram encontradas diferenças significativas entre os preparos com ambas as técnicas.

 

Material e Métodos

O presente estudo foi realizado com base na seguinte metodologia: estudo experimental do tipo laboratorial, com 24 dentes humanos posteriores, com canais mesiovestibulares em molares inferiores como unidades experimentais.

As amostras foram cedidas pelo Centro de Especialidades Odontológicas (CEO) Senhor do Bonfim, em acordo com a Lei Federal 10.211.23, de março de 2001, a declaração de doações para pesquisas éticas e legais e a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, mediante a importância do trabalho científico realizado, em relação à promoção da saúde bucal. Foi utilizada na pesquisa uma amostra de 24 dentes molares com raízes curvas, sendo distribuídos aleatoriamente 12 dentes em cada grupo experimental: Grupo I e Grupo II. Cada espécime apresentava identificação por um número (Fig. 1).

Para se obter o mínimo de interferência do terço cervical das amostras no processo de instrumentação ou preparo biomecânico, foi realizada a cirurgia de acesso das unidades utilizando-se uma broca esférica (fresa) #2 e uma broca tipo Endo-Z (Dentsply Maillefer®) para obter uma melhor visão da linha de corte das coroas no terço cervical. Em seguida, foi feita a secção das coroas dos 24 dentes, no terço cervical, próximo à junção esmalte-cemento, com disco de carborundum.

Em todas as unidades dos dois grupos, foi realizado o preparo do terço cervical com Broca Gates I e II, e CP Drill (Injecta). As brocas CP Drill foram utilizadas na seguinte sequência: Vermelha (D1 = 0,25mm e conicidade 0,14mm/mm); Azul (D1 = 0,30 e conicidade 0,18mm/mm) e Preta (D1 = 0,40 e conicidade 0,22mm/mm).

Em todas as amostras, o comprimento de trabalho foi estabelecido introduzindo-se, em cada raiz, uma lima tipo flexo-file #10 ou #08, até que sua ponta aparecesse no forame; então, reduziu-se aproximadamente 1,5mm, confirmando o limite apical de trabalho. Foi considerado o primeiro instrumento aquele que se ajustasse no comprimento de trabalho. Segundo o ajuste do primeiro instrumento, o ápice radicular foi protegido por cera utilidade de cor azul claro, impedindo a obliteração do ápice pela resina acrílica no momento da formação dos cubos para o experimento. Em seguida, procedeu-se à identificação da unidade pelo seu número.

 

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Esse cubos foram confeccionados com resina acrílica incolor, seguindo o molde de uma “célula” plástica com as mesmas dimensões da “célula” que seria fixada no posicionador radiográfico, no intuito de se conseguir uma padronização radiográfica.

A primeira radiografia foi realizada com uma lima que se ajustasse ao conduto, no seu comprimento de trabalho. Essa primeira tomada radiográfica foi feita para todas as unidades, independentemente do grupo.

Mantendo o padrão radiográfico, após o preparo do terço apical com a última lima, foi feita a segunda radiografia. Para não haver deslocamento do filme e modificação na posição da radiografia e, consequentemente, algum tipo de alteração no posicionamento do dente na segunda tomada radiográfica, o filme foi mantido num posicionador radiográfico (Sydney®) durante o preparo endodôntico do respectivo dente — lembrando-se que houve duas tomadas radiográficas na mesma película, uma com a primeira lima (aquela que se ajusta) e outra com a última lima.

O sistema alternado nada mais é do que um contra-ângulo que apresenta diferença do contra-ângulo convencional no que se refere a uma redução na frequência de rotações por minuto, além de ter uma cabeça tipo Push-Button para o encaixe dos instrumentos em aço-inoxidável que poderá ser conectada ao motor elétrico ou ao micromotor do equipo odontológico. No presente estudo, o contra-ângulo foi conectado ao equipo e funcionou por pressão pneumática. Quando o contra-ângulo foi utilizado acoplado ao equipo, trabalhando por força pneumática, não se tinha o controle da velocidade, ou seja, das rotações por minuto (rpm) — o que é uma desvantagem no preparo dos canais radiculares, por não se ter um controle maior do movimento dos instrumentos. Assim, deve-se ter mais sensibilidade no que se refere ao preparo dos condutos, principalmente em canais atrésicos e com curvaturas acentuadas.

O contra-ângulo utilizado no presente estudo foi o NSK – Tep E16R, com grau de oscilação de 45º e uma redução de 16:1. O micromotor utilizado é capaz de realizar de 5.000 a 20.000rpm. Dessa forma, obteve-se, com a redução, 1.250rpm. Essa redução faz com que os instrumentos adquiram um certo torque que facilita a instrumentação (Fig. 2). Os canais das unidades do Grupo I foram preparados com limas tipo FlexoFile (Dentsply Maillefer®), até a lima #30 com conicidade de 0,2mm/mm. No Grupo II, a instrumentação dos canais foi realizada com Sistema RaCe® da FKG – Dentaire® até o instrumento #30 com conicidade de 0,2mm/mm. Assim, foi mantido um padrão para os dois grupos.

Para manter o padrão da instrumentação no Grupo I, cada jogo de limas foi utilizado quatro vezes e, durante todo o preparo biomecânico, a patência do forame mantida com a lima #10. No Grupo II, cada conjunto do sistema RaCe foi utilizado cinco vezes, seguindo a patência do forame, conforme o Grupo I. Durante todo o preparo, os canais foram irrigados com hipoclorito de sódio na concentração de 2 a 2,5% (Q-boa®). Em cada troca de instrumento, a irrigação foi realizada com seringa tipo Luer 20:5, tendo o cuidado de se penetrar, sem exercer pressão, com a agulha de 0,019” tipo Capillary Tips (Ultradent) em torno de 2mm além da entrada do canal. Sempre seguiu-se com a recapitulação para remover detritos de dentina, com um instrumento de conicidade menor, entre a troca de instrumentos.

 

Preparo biomecânico

» Grupo I: nesse grupo, foram utilizadas limas do tipo Flexofile (Dentsply Maillefer®), que são instrumentos fabricados a partir de uma haste de aço inoxidável especial de secção triangular e que, após passar por um processo de torção em torno do próprio eixo, adquirem uma forma espiralada. Por possuir o ângulo da lâmina de corte em 45º ou 60º, adquirem uma flexibilidade maior do que as limas tipo K. Esses instrumentos são identificados pelo símbolo de um triângulo, presente em seu cabo. A técnica de instrumentação denominada inversão sequencial foi escolhida na utilização dos instrumentos de aço inoxidável (limas tipo Flexo-file). Essa técnica foi descrita por Souza10, em 2003.

O próximo passo na técnica de inversão sequencial seria a utilização da Broca Batt #12. Porém, para esse estudo foi escolhida a broca CP Drill, seguindo a sequência de utilização de acordo com o fabricante.

Com a finalização do preparo com as brocas CP Drill, obteve-se o preparo do terço cervical do canal radicular. Em seguida, fez-se o preparo dos terços médio e apical, sendo esse último o foco principal do estudo.

É importante lembrar que a sequência dos instrumentos deve seguir a instrumentação no sentido coroa-ápice até o instrumento escolhido como final, que no caso foi a lima #30. Para realização do preparo desses dois terços, utilizou-se o sistema alternado acoplado ao micromotor do equipo odontológico.

Após a instrumentação dos canais radiculares, passou-se para a segunda tomada radiográfica, com o último instrumento no comprimento de trabalho — nesse caso, uma lima #30.

» Grupo II: para o preparo nesse grupo, foram escolhidos os instrumentos da indústria FKG, sistema RaCe™, também acoplados ao mesmo contra-ângulo do Grupo I, porém com a cabeça para adaptação dos instrumentos em NiTi e rotação contínua. Os instrumentos RaCe possuem secção triangular, lâminas cortantes alternadas e ponta inativa. O seu design apresenta duas funções: eliminar o efeito parafuso e o travamento. Cinco diferentes PRE-RaCe e onze instrumentos RaCe encontram-se disponíveis. Porém, nessa pesquisa foram usados os seguintes instrumentos para o preparo biomecânico: PRE-RaCe: 40/10 e 35/08; Easy RaCe: 25/06; 25/04; 25/02 e 30/02. Após o preparo biomecânico com esse sistema, foi colocada uma lima tipo Flexofile #30 para a realização da segunda tomada radiográfica.

As amostras foram divididas em dois grupos de 24 dentes cada:

• Grupo I: técnica alternada – inversão sequencial

• Grupo II: técnica contínua – sistema Easy RaCe®.

Para avaliar a presença de desvio apical, as radiografias dos Grupos I e II foram colocadas separadamente sobre o negatoscópio e analisadas por dois cirurgiões-dentistas, com o auxílio de lupa com 2X de aumento, anotando-se em uma ficha a presença ou ausência de desvio apical. Após preenchidas, as fichas foram encaminhadas para avaliação e elaboração dos resultados.

 

Resultados

Após a avaliação das radiografias sobre o negatoscópio e o preenchimento da ficha contendo marcações quanto à presença ou ausência de desvio apical em cada unidade analisada, pode-se constatar que:

» No Grupo I, dos 12 canais instrumentados, 3 apresentaram desvio apical e 9 não apresentaram (25% com desvio apical e 75% sem desvio).

» No Grupo II, nenhum dos 12 canais instrumentados sofreu desvio apical (100% sem desvio apical).

» Os desvios presentes no Grupo I não foram severos, mas apresentaram aproximadamente 0,5mm de angulação entre o primeiro instrumento (primeira tomada radiográfica) e o último instrumento (última tomada radiográfica) (Fig. 3, 4, 5).

 

Discussão e Conclusão

De acordo com os resultados, pode-se concluir que o preparo biomecânico pelas duas técnicas apresentadas é de fundamental importância para evolução do tratamento endodôntico.

Pelo fato de o estudo ter sido realizado em clínica/laboratório, há alguns pontos a serem considerados:

1) Os espécimes não apresentavam uma configuração única, sendo a anatomia das raízes a principal condição para o sucesso do tratamento endodôntico.

2) O preparo biomecânico foi realizado sem um apoio fixo, ou seja, com o bloco apoiado numa bancada e fixado somente pela mão do operador. Isso interfere no ato operatório.

3) O estudo, sendo realizado in vitro, com as unidades seccionadas e com o preparo prévio com brocas Gates Glidden e CP Drill, facilitou a instrumentação até a lima #30.

4) No Grupo I, a realização da instrumentação foi realizada com recapitulação na maioria dos casos. Para um melhor preparo, sugere-se a instrumentação com o auxílio de limas intermediárias, como é o caso das limas Golden Medium (Dentsply Maillefer®). Sugere-se a realização de um trabalho analisando a instrumentação com e sem essas limas citadas.

O mais importante na escolha do equipamento para realizar o preparo automatizado — seja ele para movimentos alternados ou contínuos — é o domínio técnico e científico dos passos operatórios, um conhecimento minucioso dos instrumentos e da dinâmica de sua utilização. Com o passar do tempo, o clínico irá perceber que o equipamento está se “adaptando” à sua filosofia de tratamento, tendo assim total domínio sobre ele. Como relatado na apresentação do trabalho, sugere-se a inclusão dos sistemas de rotação alternada nos Centros de Especialidades Odontológicas, pelo Ministério da Saúde, na rede SUS, já que eles apresentam baixo custo, além de todas as qualidades relatadas durante o presente trabalho.

 

 

 

 

 

 

 

 

Como citar este artigo:

Paiva Neto AF. Assessment of apical third morphology in root canals after biomechanical preparation: Alternate and continual rotations (Easy RaCe system). Dental Press Endod. 2012 July-Sept;2(3):54-60.

» O autor declara não ter interesses associativos, comerciais, de propriedade ou financeiros, que representem conflito de interesse nos produtos e companhias descritos nesse artigo.

 

 

Artur Fernandes de Paiva Neto

Endereço para correspondência:

Av. Dois de Julho, 557 – Centro – Senhor do Bonfim/BA

CEP: 48.970-000 – E-mail: arturpaivaneto@hotmail.com

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